Quando eu era criança só se entrava para o ginásio através de concurso, um exame chamado admissão. Para se fazer prova para as escolas públicas (excelentes!) era preciso apresentar o comprovante de aprovação no exame de admissão ao ginásio de uma escola particular. Havia cursinhos (similares aos de vestibular de hoje) que preparavam os alunos.
Eu estudei no Curso Goiás, no Leblon. Percorri todo o caminho necessário, exatamente como faziam os demais alunos de dez anos, e optei por ficar no CAP, Colégio de Aplicação da UFRJ. Minha professora de Português no curso Goiás era a D. Cléa e o Major Moraes, seu marido e dono do curso, ensinava Matemática. Eu não me importava com seu nome, embora soubesse se chamar João Luiz. Todos nós o chamávamos Major. E era major: uma pessoa grande – embora baixo e magro-, assim como a mulher era serenidade e firmeza vivas. Ensinava-nos professando o que disse Guevara - “Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás!” – que talvez nem conhecesse senão de jornais.
A professora de redação chamava-se D. Carmem. Já meu irmão, mais novo, teve como professora de redação a filha de D. Cléa: Sonia. Foi seu sorriso meigo que me recebeu no Cap (ela era do terceiro ano clássico) quando lá cheguei, em 64. Era o que eu conhecia dela, tão mais velha que eu. (Concepção de criança, pois se eu tinha 11, ela devia ter 17).
Soube pelos jornais que Sonia casou-se, passou a chamar-se também Angel Jones e morreu, segundo testemunhas – não num tiroteio em São Paulo, como disse a polícia – com um tiro de misericórdia na cabeça, em São Paulo, depois de ter sido seviciada e torturada no DOI, no Rio de janeiro.
Há episódios passados que eu acesso pouco. Mas lá estão na memória e eu a reviro quando leio notícias como essa, do julgamento pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) da ação da OAB que contesta o artigo 1º da Lei da Anistia. O julgamento foi adiado e não há previsão de outra data. Seria nesta 4ª feira, 14 de abril, mas o Supremo entende que a ação deve ser julgada com quórum completo – havia quórum mínimo. Para a OAB, a lei "estende a anistia a classes absolutamente indefinidas de crime".
Crimes políticos foram perdoados por essa lei. E também foi estendido o perdão aos agentes públicos que, na época da ditadura, abusaram da sua autoridade e poder contra os que se opunham ao regime. É o que está sendo contestado pela OAB, em suma: a anistia estendida aos que torturaram, estupraram e mataram - durante a ditadura -, considerando-os criminosos políticos. O que não são: esses são crimes comuns que, portanto, não têm esse amparo legal.
Não faço política partidária (não sou filiada a nenhum partido), não faço apologias. Mas sou um ser político. Todos somos.
Diz Eugênio Evtuchenko, na página 8 de Autobiografia Precoce:
"Diante de um espelho, que os homens digam, não quantas vezes mentiram, mas simplesmente, quantas vezes preferiram o conforto do silêncio. Sei que eles têm um álibi, com certeza, inventado por seus similares: o silêncio é de ouro. A eles eu responderia: essa espécie de ouro não é pura. Esse silêncio é falso. Isso é válido para todos os mortais, mas cem vezes mais ainda para os poetas, que devem expressar uma verdade concreta. Quando se começa por silenciar a sua própria verdade, acaba-se por silenciar sobre as verdades, sofrimentos e infelicidades dos outros."
Eu ainda creio no que escrevi na introdução do meu livro Uitzilim, onde também cito esse trecho de Evtuchenko, transcrito acima:
"Estarmos presentes, ainda que só com nosso dizer poético, é um passo que pode ser dado para que venhamos – nós, ou nossos filhos – a celebrar, com amor, o mistério da vida. É deixar que nossos silêncios internos se manifestem na ação e sejam uma expressão política, através da arte."
E como escritora, poeta, mulher, mãe, cidadã, considero a frase de Guevara a expressão de um princípio. Participei pouco do movimento estudantil por n motivos pessoais – muito limitada até pela idade -, é verdade, mas vivi muito de perto essa parte da nossa história - de 67 a 69.
Na matéria publicada dia 29 de março em Vermelho, Antonio Capistrano, ex-reitor da UERN, diz:
“(...) : os lideres nazistas foram condenados pelo Tribunal de Nuremberg por terem cometidos crimes de guerra. Não pelas mortes em combates, mas sim, pelas torturas e assassinatos cometidos friamente contra milhões de pessoas, a maioria de judeus, comunistas e maçons, mortos nos campos de concentração espalhados por diversos paises da Europa, crimes esses praticados por europeus, arianos, de olhos azuis, e não por árabes, palestinos, iraquianos nem iranianos. O holocausto do povo judeu foi fruto da Europa Ocidental e Cristã e não do mundo árabe ou do mundo islâmico. Milhares e milhares de pessoas foram torturados e assassinados sem nenhuma chance de defesa, uma verdadeira barbárie. Em uma guerra, a morte em combate é diferente de um assassinato frio através da tortura de pessoas indefesas. A guerra já não é aceitável, imagine a tortura. Durante a ditadura militar, aconteceram fatos semelhantes aos ocorridos nos campos de concentração nazista, claro que em menores proporções, mas, no mesmo nível de crueldade. Não se pode perdoar o torturador. Tortura é um crime hediondo. (...)”
Durante a ditadura usamos o humor para fazer frente à censura, mas isso já não é necessário. Bastar, nunca bastou. O devir não mais tem um movimento que parece perpétuo e o sujeito não mais constrói sua imagem a partir do olhar do Outro. A pós-modernidade e a globalização são outros movimentos, o moderno vai sendo superado – embora não extinto. Trata-se agora de aprender a lidar com essa nova condição global da humanidade.
Mas como dissolver fronteiras geográficas se somos um dos únicos povos que não dissolveu certos nódulos? E eles também cá estão – em mim, em você, leitor, no nosso país. Cancros e metástases a nos corroer a memória de cidadãos, a memória do Brasil – enquanto sem resolução. Males vivos a serem extirpados com a ação que faltou: o julgamento e a punição desses crimes. Não se trata de ressentimentos. E não estamos - como o ‘eu’ moderno - procurando respostas. Nós as temos: estamos é sem coragem de escrevê-las em nossa história.
Contudo, embora junto a episódios que acessamos pouco, essas lembranças se reviram de tempos em tempos – e nos reviram com elas.
Um desfecho não foi escrito. Uma lacuna nefasta na nossa história precisa de um fecho, para que os fatos possam ser memória. Jamais esquecidos, mas memória - na acepção da palavra. Como “virar esta página da história” - ou fechar este livro - nós sabemos. A pergunta é: quando?
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Artigo originalmente publicado na revista Letras et cetera com o título "O julgamento da ação da OAB que contesta lei de anistia foi adiado sine die"