online. Grata pela visita e leitura da minha prosa. Sonia Regina. prosa, somente prosa: Fragilidades não fracassam: criam desfechos

Fragilidades não fracassam: criam desfechos

Ella nada via ou escutava: dedicava-se à observação de si mesma. O cotovelo apoiado na cama seria uma alavanca para o sono se não fossem agrestes, aquelas noites.

Já não tossia. Mas ainda doía na garganta, o hálito. Tinha na boca um cheiro ardido. Não perguntara ao médico por que: imaginava e seguia, sem perguntas. O sensível falaria dos mistérios.

* * *

Gostava da água - em qualquer circunstância. Uma delícia lavar as mãos por sua conta, sem bacia. Não sabia que, pelo espelho, era observada; tampouco se lembrava que seu rosto era janela escancarada onde seu eu interior se debruçava.

- Bom lavar as mãos na pia, hein?

- É... – Sorria, pensando que a cadeira de rodas tinha essa vantagem. As desvantagens... não as cogitava.

Desceu ao pátio numa manhã gloriosa, com a empregada empurrando-a. Um apertozinho no peito queimava mais que o sol. Não voltou, naquele período. Era suficiente ser içada semanalmente sobre os seis degraus da entrada do prédio do médico. Ella nada dizia do nó na garganta e aceitava, agradecida às tantas mãos que lhe propiciavam subir e descer as escadas. O medo crescia em si, desvelado pelos sentidos. O brio se calara e falava a humilhação, num idioma que não conhecia.

Não voltou a sair senão para o médico ou para o estritamente necessário. Enquanto a auto-estima caía, Ella cogitava sobre os sonhos: seria bom poder pisá-los e torná-los chão. Perdia-os e tentava se agarrar às paredes concretas para não cair no poço que intuía.

O banho era quase uma bênção (a mangueira do chuveirinho esticada desde o box, porque a cadeira higiênica não entrava lá). Tudo e todos encharcados riam das piadas que fazia de sua própria situação. As risadas pareciam amenizar o esdrúxulo. Passou a ser verdadeiramente uma bênção quando foi instalado um chuveiro do lado de fora, ao lado do vaso sanitário. Ella tomava banho sem qualquer auxílio e essa independência a fazia viver momentos de rara felicidade.

* * *

As muletas a esperavam e prometiam coisas. Deu suas primeiras investidas. Ella dirigia o carro, ia à faculdade. Bons momentos, a sós consigo própria. Contudo, o medo lá estava: germinando, crescendo, atemorizando-a com a possibilidade de esbarrões e pisadelas. - Não quero mais ir ao chão-, era o que dizia quando lhe perguntavam por que ainda evitava sair.

Certo dia foi à cozinha, escolheu a refeição, acondicionou-a em potes plásticos. Frutas, um suco, queijo branco, tomates e pão árabe. Arrumou os recipientes num saco plástico e suspirou. Ella respirou fundo, retomou as muletas e, na esquerda, pendurou o saco. Deu uns passos. Funcionava! Andou até o quarto experimentando sorrisos novos.

Sem martírio o movimento fundamental se dera, a ousadia espalhava a poeira. Estava sozinha pela primeira vez desde o acidente e percebia poder contar consigo mesma. Assim gostava de ser: independente, ultrapassando barreiras e contornando obstáculos.

* * *

Mas já não o era – não por completo. Ella dizia que uns medos a rondavam e intimidavam sua valentia.

- Não sou covarde! - Mas deixava escapulir momentos que poderiam ser prazerosos.

Foi afundando em si, os medos exteriores consumindo sua mobilidade. Avançava e recuava, sem bravura:

- Preciso ficar quieta, o sossego me dá paz. Não estou frágil, minhas defesas é que andam enfraquecidas. Estou lábil, choro à-toa: não gosto de me expor assim.

O ânimo permanecia derrotado pela aparente conformação, o corpo abafado pelo orgulho. Já nem sabia se era dor na alma o que sentia, tampouco percebia a vergonha fina que a espetava.

Ella não tinha consciência do amor-próprio ferido, do quanto se sentia humilhada. O destemor fenecia. Tornara-se surda aos chamados e apoios não lhe davam a sensação de proteção que encontrava na quietude.

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Vegetaria, se não fosse a arte. Pintava. Telas de um colorido suave, doces, revelavam delicadeza e beleza harmônicas e sugestivas. O uso de cores secundárias e matizes, a ausência de modelos ou padrões tornava suas criações muito pouco simples: efeitos sutis exprimiam sua subjetividade, significando-a, revelando-a.

No dia-a-dia nada consentia, ou desaprovava. Tateava a dureza do mundo. A vida fora uma obsessão e agora a aterrorizava, embora não tivesse clareza disso. Ella vivia num sítio dizimado e acreditava avançar entre os destroços. Ledo engano: arrastava-se em círculos, incompleto labirinto na direção do poço. Como a luz, continha a sombra, e percebia ser moradia espetacular de si própria.

Uma ostra fugitiva, evitando correntes, tinha medo de escutar a carne e evitava o fluxo do sangue. Nessa surdez imperava um silêncio que a protegia, trazia-lhe tranqüilidade de espírito e serenidade. Ella dormia um sono profundo, sem sonhos.

* * *

Despertar não foi simples, acordara ainda presa a temores. O medo maior se fora e era impossível dormir, assim liberta. Um brilho reprimido escapulia do degredo como um turbilhão que a entontecia e apavorava.

* * *

Ele viera e a acompanhava sombra a sombra, acreditando no sol que as criara. Impedia-a de ser arrastada ou envolvida desordenada e impetuosamente pelas emoções. Sem excluir o mundo fizeram uma pausa e tomaram um caminho doce que se agigantou, sem pretensão de grandeza.

A ternura é lenta quando o novo aceita a pausa: uma quietude sem alento ou deleite murmura sons pouco audíveis – mas o dizer é de nutrição. O deslocamento de pequenos cercos reavivava delicadezas, liberava imagens e a metamorfose se deu num momento de alegria no percurso. Restauração.

* * *

Mais que um verbo escrito, Ella estava além da fala. Era o que é um café em sua solubilidade, cor, gosto e cheiro: expressão clara e sem símbolos, voz, grito ou canto na arte de combinar ações. Havia uma clareza absurda, que lhe lembrava Clarice Lispector:

“Estou sentindo uma clareza tão grande que me anula como pessoa atual e comum: é uma lucidez vazia, como explicar? assim como um cálculo matemático perfeito do qual, no entanto, não se precise. Estou por assim dizer vendo claramente o vazio. E nem entendo aquilo que entendo: pois estou infinitamente maior do que eu mesma, e não me alcanço. Além do quê: que faço dessa lucidez? Sei também que esta minha lucidez pode-se tornar o inferno humano — já me aconteceu antes. Pois sei que — em termos de nossa diária e permanente acomodação resignada à irrealidade — essa clareza de realidade é um risco. Apagai, pois, minha flama, Deus, porque ela não me serve para viver os dias. Ajudai-me a de novo consistir dos modos possíveis. Eu consisto, eu consisto, amém.”

Mantinha-se alerta. As pernas descansando sobre a pilha de almofadas sinalizavam: fragilidades não fracassam, criam desfechos.

* * *

- Pense em você, esqueça tudo e todos. Faça. Qualquer coisa. Estou consigo.

- Ainda sinto temores, mas não os tenho em mim - não mais. Sobre o solo eu não caio, dele não me levanto: giro, rodopio. Danço?

- Dança. Comigo.

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O texto em itálico é de Clarice Lispector:

Aprendendo a viver, Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2004

 

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©2010 Sonia Regina