online. Grata pela visita e leitura da minha prosa. Sonia Regina. prosa, somente prosa: Para além dos desabafos librianos - Sonia Regina

Para além dos desabafos librianos - Sonia Regina

Para além dos desabafos librianos

Sonia Regina





Denílson, caro amigo

Uma carioca me remeteu o seu diário propondo-me um desafio, que aceitei. Estou escrevendo o livro “O diário incompleto de uma libriana” sobre esse trabalho astrológico - bastante interessante - que venho fazendo com ela. Envio o esboço. Creio que será leitura curiosa e profícua para o grupo que coordena. Disponibilize-o ao meu colega, também. Ah, e parabéns pela idéia deste desafio: criativa, fora do vulgar, bem...libriana.

Linda Goodman



O diário incompleto de uma libriana


I - O desafio


Linda, olá

Sei que estou no meu inferno astral e desacreditando de qualquer oráculo (até do I Ching) porque todos dizem o mesmo, que pouco expressa minha maneira de ser neste momento, o como e o que eu venho vivendo. Gostaria de saber se a astrologia diria diferente.
Sou muito reflexiva, tenho algumas idéias incomuns – boas, mas que não me têm ajudado. Pensei que você podia levantar algumas características minhas e fazer uma análise delas, o que poderia me servir de orientação.
Como, se moramos em países diferentes? Bem, não sei o como, isso deixo por sua conta. Mas creio que a partir de um diário – incompleto, não escrevo todo dia – possa ser feito um bom trabalho. É um desafio, talvez. Você quereria tentar? Quanto isso custaria?

Saudações da Mariana



Mariana,

Aceito o desafio, mande-me o diário.
Diga-me seu telefone e endereço postal, para combinarmos o pagamento.
Saudações,

Linda




II – Uma fábula, para iniciar

Era uma vez uma mulher para quem tudo vinha sendo difícil e lhe era muito complicado tentar entender o que se passava com ela. Interrogava-se, filosofava, elencava uma série de respostas possíveis que não lhe permitiam avançar para nenhum lado, tampouco recuar.

Assim mesmo insistia e reiniciava, a cada momento, como se daquele novo instante dependessem todos os restantes. Mas se incomodava com tanto pensamento, que lhe iam minando as ações.
Cansou-se já próxima de, enfim, lograr encontrar alguma resposta. Suas sensações lhe demonstravam que já percorrera mais da metade de seu caminho, se é que assim se podia chamar essa jornada árdua que resolvera empreender.
Entretanto, ainda tinha forças para produzir encantos. E procurou-me, nessa época.
Fiquei intrigada, talvez mais do que encantada. Sua argumentação clara, sua recusa obstinada em capitular e sua lógica filosófica me diziam que estava lidando com uma libriana. Mas eu não concebia como decidira, sem me conhecer ou ter qualquer apresentação, fazer-me proposta tão audaz, de difícil planejamento e execução. E meu ego de Marte resolveu não deixar pedra sobre pedra até provar que eu era mesmo uma astróloga digna de tal desafio...


III – Um campo ceifado


6ª, 14.9.07
Percebo diferenças... Efeitos. Ultimamente pergunto-me coisas simples que só são respondidas pelo transcurso de si próprias. Interessante observar-me como se o fizesse a um outro.

3ª, 18.9.07
Um caminho, um campo... Sou como um campo que foi todo ceifado, ficando, das plantas, tão-somente os tocos. Contudo, vê-lo já dá a idéia do que se pode nele plantar: há uma escolha que pode ser feita.

Domingo, 30.9.07
Queria um jardim. Plantar grama, desenhar na terra as formas que julgo ficarão mais bonitas. Poderei ver crescer a beleza que eu mesma plantar com critério, cuidando-as com esmero e carinho. Meus desenhos no chão ganharão vida.

Domingo, 21.10.07
Já chorei muito, de manhã; o que não gostaria, pois é meu aniversário. Tive que brigar com algumas pessoas que queriam estar comigo, mas da maneira delas. Que seja em seus aniversários, ora! Argumentei; tranquilamente ouvi argumentos muito mais numerosos que os meus. Gosto de debates, mas esses me deixaram exausta, não chegamos a nenhum ponto em comum e tive que recusar com firmeza. Adoro estar na rua, quando saio custo pra voltar, vou emendando uma coisa na outra. Sambar, ir a festas... Quem não gosta? Eu adoro, e festa de aniversário, então... Mas passar meu aniversário no meio de uma multidão, numa noitada de samba no clube dos Democráticos! Nada mais impessoal. Fiquei chateada por ter sido tão incisiva, pois queriam me homenagear. Muitos telefonemas e convites me alegraram, contudo preferi adiar os programas: hoje ficarei com meu companheiro, inventaremos algo. Quero que caminhemos à-toa na praia, lado a lado, namorando num verdadeiro compartilhar.

2ª, 22.10.07
Mais um ano para desenvolver um projeto que objetive, a princípio, cuidar melhor de mim. Mas, exatamente, o que é isso?
Exatamente sempre foi uma palavra que me intrigou. Uma manhã, bem cedinho, muito frio, eu me sentara à borda da piscina, olhava as folhas do pinheiro. Pensava, provavelmente, em algo, mas não me recordo. Havia um mosteiro próximo, o monge nos visitava sempre. “Sinto o cheiro do café”, dizia. Sentou-se ao meu lado, calado, aproveitando aquela brisa. Conversamos, ou melhor, contei-lhe meus pensamentos. Ele perguntou-me: “o que você quer dizer, exatamente?”. E eu não soube responder. Fiquei constrangida, como se estivesse desnudada: como ele sabia que meus pensamentos jorravam como uma fonte incessante de palavras, às quais nem sempre eu conseguia dar sentido?

5ª, 25.10.07
Ouço Bach e verifico que continuo sem saber por que não aprendi a tocar nenhum instrumento. A música me faz bem, parece que meus elétrons evoluem mais rapidamente, e dançam. E me harmoniza. Talvez eu devesse ter nascido em um país frio para ficar, nos meses de inverno, sentada próxima à lareira, ouvindo Bach ou Mozart, lendo, ou escrevendo... Talvez produzisse de forma mais organizada.

Domingo, 04.11.07
Almas como a minha sempre estão buscando transformações, inquietas e inconformadas com o estado natural das coisas. Aqui reside, talvez, a morada primeira da paixão que tenho pelo conhecimento e pela palavra: busco aproveitar as palavras ao máximo, para que digam além do que efetivamente podem.

Sábado, 10.11.07
A minha geração pagou mesmo um preço caro por tanta ousadia na juventude, colocando o mundo de cabeça pra baixo ao quebrar tantos tabus de uma só vez. Hoje somos intelectuais de uma classe média falida financeiramente, sem traquejo para lidar com a inversão de valores que assola a sociedade ocidental, atidos ainda a bandeiras de justiça e verdade numa cultura perversa, onde o bom homem é visto como o avesso do sucesso e da esperteza, pois não sabe levar vantagens nas situações em que se coloca. Permanecemos íntegros e fiéis a princípios que batalhamos para ensinar aos nossos filhos, já que parece que os registros da moral e da ética se perderam nos anos de ditadura. Sofremos dia-a-dia porque a voz que tanto bradou é considerada ultrapassada e inoperante.
Continuo tendo ojeriza a injustiças.

4ª, 14.11.07
Penso, às vezes, que todo esse carinho que imaginamos ser uma extensão do afeto – o afago – seja, como uma constante, produção exclusivamente feminina. Pois é do que as mulheres mais têm se ressentido, através dos tempos: da evasão do afago.
O afago diz respeito ao namoro, a esse ronronar, arrulhar e tocar suaves, impregnados de amor. E as mulheres são eternas namoradas, estejam elas na condição de noivas, esposas ou amantes, o que não acontece com os homens.

2ª, 19/11/07
Férias, oba! Só viajo semana que vem. Venho trabalhando direto desde 6ª feira, tenho dormido pouco, mas nem estou cansada. Escrevi um bom artigo sobre a poesia brasileira. Não foi fácil chegar a um texto conciso depois de ler tanta coisa interessante. E escrevi sobre tudo, desde Pero Vaz de Caminha até a contemporaneidade. Ficou legal, até meio didático. Quando me cansava, lia poesia em castelhano, e aproveitei para traduzir 8 poemas (Neruda e Lorca) que busquei em fontes confiáveis, como é a da Universidade do Chile, que visito às vezes. Os dias têm estado lindos, mas estava mesmo envolvida e não quis sair sozinha.

3ª, 20/11/07
Gosto de descobrir poetas novos e achar livros bonitos, de capa dura, daqueles que são uma obra em si. A escrita merece, e a poesia. Gosto de trabalhar com ela, além de escrever meus próprios poemas. Sinto-me pintando um quadro com as palavras.
Hoje saí pelo mundo à cata de novidades literárias. Terminei o dia conversando com o meu amigo, dono do café-livraria. Que papo interessante, o dele. Faríamos sucesso numa mesa de um congresso, formamos boa dupla de debatedores. Comentamos alguns livros de auto-ajuda que estão fazendo sucesso, mas não pela qualidade literária. Ele discorria sobre os aspectos espirituais e eu fazia o papel de juiz, tentando, dentre seus controvertidos prós e contras, pinçar todos os argumentos, contra e a favor. Uma delícia de tarde; discutimos de maneira tão agradável e cortês que ficaria com ele conversando ainda muitas horas.

4ª, 21/11/07
Passei o dia inteiro na praia, nadei tudo que tinha direito, estou super bronzeada. O mar estava calmo e belo, muito belo, se desmanchando suavemente dos seus matizes de verde. Um colírio, nesse dia esplendoroso. Não há quem possa ficar alheio, pois mexe com as entranhas da gente! Há sol, a praia está deserta como gosto, há um cheiro gostoso de maresia no ar...

5a, 22/11/07
Acordei, mas ainda estou exausta. Acho que andei me agitando muito nos últimos dias. Lembro-me da cena que vi ontem, quando voltava pra casa. Um ambulante conversava com o motorista de uma BMW conversível, azul marinho (linda!), que estava parada no sinal. O motorista parecia alegre, muito alegre. Era um senhor de cabelos brancos, bronzeadíssimo, um belo homem. Parecia cheio de vida, movimentava-se (feliz?) inquieto no banco, enquanto conversava. Fiquei admirando o papo deles e aquela alegria. Penso que deve estar vivendo algum amor...


IV - A possibilidade de um jardim

No livro, será aqui que analisarei as características discutidas com Mariana e a orientação astrológica. Neste trabalho, por enquanto, somente listo algumas dentre as que aparecem nos trechos destacados acima, do diário.


Mariana é uma libriana típica: lógica e inteligente, um raciocínio combinado à sua ternura e romântica imaginação, senso prático e compaixão.
Umas vezes calma, bondosa, delicada, perfeitamente equilibrada, suave, graciosa e encantadora; outras vezes aborrecida, briguenta, obstinada, agitada, deprimida e confusa. Argumenta com clareza e se recusa obstinadamente a capitular, numa busca constante de harmonia. Pode estar dias a fio muito ocupada para se divertir, passando noites em claro e se levantando quando o galo canta. Mas depois se jogará numa poltrona e ninguém a tirará de lá. Como todo libriano, sabe (instintivamente) que para restaurar a harmonia do corpo deve alternar seus períodos de atividade com períodos de completo repouso. Fala pelos cotovelos, monopolizando a conversa, para depois escutar tão interessada e atentamente que chega a lisonjear. Discute por puro prazer. Uma riqueza se encontra nas suas emoções, sejam elas elevadas ou depressivas. Mas tem uma maneira filosófica de abordá-las, o que as suaviza. O sentido de justiça a faz querer examinar todas as possibilidades, antes de tomar uma decisão. Não gosta que a apressem ou fustiguem, enquanto está decidindo, mas a opinião dos interlocutores sempre lhe merecerá tanto respeito quanto a dela. Adora a harmonia dos sons, das cores, da poesia e o uso adequado da palavra. Nasceu com afeição pelos livros e com tamanho respeito pela palavra impressa que pode até desdenhar as brochuras. Uma companhia é sua necessidade mais intensa: não gosta de trabalhar sozinha e é literalmente incapaz de viver só. É tão sentimental quanto uma renda antiga e tão afetuosa quanto qualquer mulher tem o direito de ser. Mas não é fraca nem indefesa e sua suavidade não esconde suas nove partes de aço. Quando arregaça as mangas, trabalha de maneira vigorosa. É capaz de realizar a imagem que fez: num campo ceifado pode arrancar os tocos de árvores, desenhar e construir um jardim, verdadeiramente. Com companhia.


Nova York, 2008-02-05
Linda Goodman

 

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©2010 Sonia Regina