Opus Noturno
Sonia Regina
Quando o noturno diz - e não diz, ao mesmo tempo - respeito à noite? O quê de noturno há nesta manhã, que é fundo para o opus 32 de Chopin? O lápis? O papel? Os livros? A luz acesa sobre a mesa?
Lá fora há o verde escuro sobre o cinza. Folhas pousam no céu, ausentes de sombra, brisa ou canto de pássaros. Aqui dentro há corações que batem sem sobressalto e, como percussões, saúdam os fatos.
Diz Clarice Lispector, em A Hora Da Estrela :
"Pensar é um ato. Sentir é um fato. Os dois juntos – sou eu que escrevo e que estou escrevendo. Deus é o mundo. A verdade é sempre um contato interior inexplicável. A minha vida a mais verdadeira é irreconhecível, extremamente interior e não tem uma só palavra que a signifique".
Encarar os fatos, sentir o querer e não dar pontos sem nós requer habilidades. Palavras se costuram, não se alinhava uma narrativa que não se limita a refletir imagens fiéis à realidade, como um espelho. O jogo das transfigurações trabalha como um espéculo. Leal à realidade, joga com reflexos que a interrogam, na linguagem.
Quando o narrador se confunde com o autor causa no leitor um desconforto, pela necessidade de enxergar além das entrelinhas. O leitor é questionado pela pluralidade de sentidos, há uma realidade além da habitual que transpõe as fronteiras entre o real e o imaginário.
Se a literatura é uma experiência além do costumeiro, feliz é palavra vivível. Mantida a ambigüidade entre realidade e ficção, desenvolve-se uma operação ordenadora que aponta para a obra, como o produto de um gesto mimético, liberta da pura e simples imitação da vida.
Interrogando seus próprios elementos falidos, abortados, interrompidos e desfeitos, o leitor "aprende a só-ser" [1] o não-ser, novo referente que, numa linguagem poética, o representa na realidade de uma mesma unidade essencial. A diversidade de significados esquecidos se reflete na construção, através da arte, do aprendizado do ser-só. [2]
Hábil no contentamento, paixão, élan, esvaziados de significados os laços, desatados os nós cegos, a linguagem narra a subjetividade, assim como o cenário. Alocadas na memória, já não são fantasmas as lembranças que assombravam, quando fora dela.
O que foge à compreensão precisa ser vivido e, não, entendido, como uma conversa de surdos, que simplesmente acontece; como uma manhã que ainda dorme quando a escuridão não se reflete ou respira a luz que narra a vida primordial.
Somente como "um refletor de sua imagem sob a magia da arte" [3] é que a noite clareia e "simultaneamente desenvolve a habilidade de ser o Outro". [4]
É quando o noturno diz e não diz respeito à noite, ao mesmo tempo.
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[1] Eu preciso aprender a só ser - música de Gilberto Gil e texto de Isabel Câmara
[2] Preciso Aprender a ser só - música de Marcos Valle e Paulo Sergio Valle
[3] Clarice Lispector. In A Hora da Estrela
[4] Clarice Lispector. In A Hora da Estrela
Sonia Regina
Quando o noturno diz - e não diz, ao mesmo tempo - respeito à noite? O quê de noturno há nesta manhã, que é fundo para o opus 32 de Chopin? O lápis? O papel? Os livros? A luz acesa sobre a mesa?
Lá fora há o verde escuro sobre o cinza. Folhas pousam no céu, ausentes de sombra, brisa ou canto de pássaros. Aqui dentro há corações que batem sem sobressalto e, como percussões, saúdam os fatos.
Diz Clarice Lispector, em A Hora Da Estrela :
"Pensar é um ato. Sentir é um fato. Os dois juntos – sou eu que escrevo e que estou escrevendo. Deus é o mundo. A verdade é sempre um contato interior inexplicável. A minha vida a mais verdadeira é irreconhecível, extremamente interior e não tem uma só palavra que a signifique".
Encarar os fatos, sentir o querer e não dar pontos sem nós requer habilidades. Palavras se costuram, não se alinhava uma narrativa que não se limita a refletir imagens fiéis à realidade, como um espelho. O jogo das transfigurações trabalha como um espéculo. Leal à realidade, joga com reflexos que a interrogam, na linguagem.
Quando o narrador se confunde com o autor causa no leitor um desconforto, pela necessidade de enxergar além das entrelinhas. O leitor é questionado pela pluralidade de sentidos, há uma realidade além da habitual que transpõe as fronteiras entre o real e o imaginário.
Se a literatura é uma experiência além do costumeiro, feliz é palavra vivível. Mantida a ambigüidade entre realidade e ficção, desenvolve-se uma operação ordenadora que aponta para a obra, como o produto de um gesto mimético, liberta da pura e simples imitação da vida.
Interrogando seus próprios elementos falidos, abortados, interrompidos e desfeitos, o leitor "aprende a só-ser" [1] o não-ser, novo referente que, numa linguagem poética, o representa na realidade de uma mesma unidade essencial. A diversidade de significados esquecidos se reflete na construção, através da arte, do aprendizado do ser-só. [2]
Hábil no contentamento, paixão, élan, esvaziados de significados os laços, desatados os nós cegos, a linguagem narra a subjetividade, assim como o cenário. Alocadas na memória, já não são fantasmas as lembranças que assombravam, quando fora dela.
O que foge à compreensão precisa ser vivido e, não, entendido, como uma conversa de surdos, que simplesmente acontece; como uma manhã que ainda dorme quando a escuridão não se reflete ou respira a luz que narra a vida primordial.
Somente como "um refletor de sua imagem sob a magia da arte" [3] é que a noite clareia e "simultaneamente desenvolve a habilidade de ser o Outro". [4]
É quando o noturno diz e não diz respeito à noite, ao mesmo tempo.
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[1] Eu preciso aprender a só ser - música de Gilberto Gil e texto de Isabel Câmara
[2] Preciso Aprender a ser só - música de Marcos Valle e Paulo Sergio Valle
[3] Clarice Lispector. In A Hora da Estrela
[4] Clarice Lispector. In A Hora da Estrela