online. Grata pela visita e leitura da minha prosa. Sonia Regina. prosa, somente prosa: Breve diário: do ceifado ao possível - Francisca de Solis

Breve diário: do ceifado ao possível - Francisca de Solis

Breve diário: do ceifado ao possível

Francisca de Solis*




6ª, 14.9 - Percebo diferenças... Efeitos. Pergunto-me coisas simples que, sei, são respondidas pelo transcurso de si próprias. Interessante observar-me: sou como um campo que foi todo ceifado, ficando, do arvoredo, tão-somente os tocos. Essa visão, entretanto, me permite imaginar o que é viável plantar. E eu acredito que há uma escolha que pode ser feita.

Domingo, 30.9 – Começaria criando um jardim. Desenharia na terra as formas e, aos poucos, veria – resgatada a alegria - crescer a beleza dos desenhos ganhando vida.

2ª, 22.10 – Como eu, exatamente. Esta, aliás, sempre foi uma palavra que me intrigou. Numa manhã fria, bem cedinho, sentada à beira do riacho eu olhava as folhas do pinheiro. Havia um mosteiro próximo, o monge nos visitava sempre. “Sinto o cheiro do café”, dizia. Sentou-se ao meu lado, calado, aproveitando aquela brisa. Conversamos, ou melhor, contei-lhe meus pensamentos. Ele perguntou-me: “o que você quer dizer, exatamente?”. E eu não soube responder. Fiquei constrangida, como se estivesse desnudada: como ele sabia que meus pensamentos jorravam como uma fonte incessante de palavras, às quais nem sempre eu conseguia dar sentido?


Domingo, 04.11 - Almas como a minha sempre estão buscando transformações, inquietas e inconformadas com o estado natural das coisas. Aqui reside, talvez, a morada primeira da paixão que tenho pelo conhecimento e pela palavra: busco aproveitar as palavras ao máximo, para que digam além do que efetivamente podem.


Sábado, 10.11 - A minha geração pagou caro pela ousadia na juventude, colocando o mundo de cabeça pra baixo ao quebrar tantos tabus de uma só vez. Hoje somos intelectuais de uma classe média falida financeiramente, sem traquejo para lidar com a inversão de valores que assola a sociedade ocidental. Atidos ainda a bandeiras de justiça e verdade numa cultura perversa – na qual o bom homem é visto como o avesso do sucesso e da esperteza, por não saber levar vantagens nas situações em que se coloca -, permanecemos íntegros e fiéis a princípios que batalhamos para ensinar aos nossos filhos, já que parece que os registros da moral e da ética se perderam nos anos de ditadura. Sofremos dia-a-dia porque a voz que tanto bradou é considerada ultrapassada e inoperante. Contudo, continuo tendo ojeriza a injustiças.


4ª, 14.11 - Penso que todo esse carinho que imaginamos ser uma extensão do afeto – o afago – seja produção exclusivamente feminina. Pois é do que as mulheres mais têm se ressentido, através dos tempos: da evasão do afago. Ele diz respeito ao namoro, a esse ronronar, arrulhar e tocar suaves, impregnados de amor. E as mulheres são eternas namoradas, estejam elas na condição de noivas, esposas ou amantes, o que não acontece com os homens.

2ª, 19.11 - Férias, oba! Só viajo semana que vem. Escrevi um bom artigo sobre a poesia brasileira. Não foi fácil chegar a um texto conciso depois de ler tanta coisa interessante. Venho trabalhando direto desde sexta-feira e tenho dormido pouco. Perdi (?) dias lindos, mas estava muito envolvida e não quis sair sozinha.


3ª, 20.11 - Gosto de descobrir poetas novos e achar livros bonitos, de capa dura, daqueles que são uma obra em si. A escrita merece, e a poesia. Gosto de trabalhar com ela, além de escrever meus próprios poemas. Sinto-me pintando um quadro com as palavras.

Hoje saí pelo mundo à cata de novidades literárias. Terminei o dia conversando com o meu amigo, dono do café-livraria. Que papo interessante, o dele. Faríamos sucesso numa mesa de um congresso, formamos boa dupla de debatedores. Comentamos alguns livros de auto-ajuda que estão fazendo sucesso: não pela qualidade literária. Ele discorria sobre os aspectos espirituais e eu fazia o papel de juiz, tentando, dentre seus controvertidos prós e contras, pinçar todos os argumentos contra e a favor. Uma delícia de tarde! Discutimos de maneira tão agradável e cortês que ficaria com ele conversando ainda muitas horas.

4ª, 21.11 - Passei o dia inteiro na praia, nadei tudo que tinha direito, estou super bronzeada. O mar estava calmo e belo, desmanchava-se em suaves verdes. Não há quem possa ficar alheio, e mexe com as entranhas o cheiro gostoso de maresia.


5a, 22.11 - Acordei, mas ainda estou exausta. Acho que andei me agitando muito nos últimos dias. Lembro-me da cena que vi ontem, quando voltava pra casa. Um ambulante conversava com o motorista de uma BMW conversível, azul marinho (linda!), que estava parada no sinal. O motorista parecia alegre, muito alegre. Era um senhor de cabelos brancos, bronzeadíssimo, um belo homem. Parecia cheio de vida, movimentava-se (feliz?) inquieto no banco, enquanto conversava. Fiquei admirando o papo deles e aquela alegria. Penso que deve estar vivendo algum amor...



* Francisca de Solis – pseudônimo de Sonia Regina

 

Somente Prosa é licenciado por Creative Commons: vedada a Criação de Obras Derivadas 2.5 Brasil License.


©2010 Sonia Regina