online. Grata pela visita e leitura da minha prosa. Sonia Regina. prosa, somente prosa: Como um estranho em terreno alheio

Como um estranho em terreno alheio



Núbia lembrava-se da expressão de dor no rosto dele enquanto vociferava frases que o atingiam como dardos.  Suas palavras cravavam-se cruéis no que restava de alegria, fragmentando-a.
Dadinho era a expressão humana de um caco. Abalado e confuso ensimesmava-se, desistindo de colocar um basta naquela fala. Núbia havia tocado nas suas emoções sem lhe pedir licença e as devolvia enxutas, como um espelho que ele não havia buscado para refleti-las. Fazia delas uso ofensivo, num discurso sem compaixão.
Agora, depois de passado o instante de fúria, Núbia sentia-se desconfortável e quase arrependida. Já vivera momentos de total desconsolo e sabia que não eram bons de sentir – por mais que pudessem ser internamente edificantes. Não eram fáceis de viver, traziam uma solidão ruim e a sensação de ser um estranho em terreno alheio.
Havia esgotado as palavras, nada lhe ocorria que fosse suficientemente bom para dizer ao marido. Constrangida e envergonhada, procurou na estante de livros um poema, mas nenhum encontrou que lhe pudesse servir de ancoragem. Talvez fosse melhor deixar a onda passar: sua angústia e a mágoa de Dadinho impregnavam a casa.
Recordou-se de como a leitura sucessiva dos escritos de Thich Nhat Hanh, monge zen vietnamita, lhe haviam trazido serenidade em certa época. Procurou-o na internet e encontrou um endereço com textos dele, leitura que fez bastante agradada.
Núbia andava afastada dessa coisa oriental... Há poucos dias soubera de um curso de respiração que uma amiga havia feito: “mudou minha vida, mas é a sua cara”, dissera. Núbia esboçara um sorriso enigmático.  Tudo que almejava era ficar quietinha esperando a maré passar, embora houvesse chegado à conclusão de que a suspensão do movimento não evitava o envelhecimento. “Não somos como automóveis antigos que, se não usados, não gastam”, pensara.
Estava assustada. Não queria inundar o marido com seus detritos e o medo de outras marcas a assolava. Não por elas em si, mas pelas feridas que as causavam.  Doíam, atravessavam anos produzindo efeitos.
Decidida, Núbia rejeitava-as. Veementemente. Não mais as queria: dores, feridas, marcas. Queria viver, simplesmente. Viver feliz.


Sonia Regina
06112010

 

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©2010 Sonia Regina