Um Bloco de Notas
Naquela manhã caminhou calado, ao deus-dará: aguardava o supérfluo ser aceito por seus pensamentos. Enxergou-a em algumas mulheres e balançou a cabeça como se, sacudindo-a, pudesse espalhar as imagens pouco cômodas.
O excesso de voz sem possibilidade de vazão o levara a um mutismo total. O trabalho na biblioteca permitia-lhe mergulhar nos livros e ainda receber por isso. E ali a sua veneração pelo silêncio não era estranha, pelo contrário: era bem-vinda; e um ponto a mais.
Rubem gostava de ler sem nada dizer e de escrever sobre o que lia, ou sobre o que lhe ocorria, embora a escrita lhe parecesse um pouco vampira de emoções. Sentia-se esvaziado, como se cada palavra pudesse levar para o papel uma energia sua.
Não se insurgira contra o ritual de ter, para cada página lida, algumas considerações no pequeno bloco de notas que ela lhe havia dado. “Para tuas reflexões”, dissera Nympha sorrindo. Não o teria oferecido, se suspeitasse que um redemoinho insano nele aportaria.
Rubem galgara, a partir de então, mirabolantes pontes para encontrar o que não via, enredado em suas obsessões. Impenetrável, cenho franzido, ele se debruçara sobre possíveis indícios e com lógica científica seguira fios condutores. Embora diante de fragmentos, estivera convencido de que, nas partes, vislumbrava-se o todo. E seguira. Acreditando em suas próprias formulações falsamente comprovadas, chegara à reta final. O bloco de notas por testemunha.
Depois de muito perambular, Rubem chegou à biblioteca. Deu uma olhada rápida nos livros devolvidos e se comoveu com o trecho de Sophia de Mello Breyner Andresen: "As imagens atravessam os meus olhos e caminham para além de mim. Talvez eu vá ficando igual à armadilha da qual os pescadores dizem ser apenas água."
Escreveu no bloco um texto que mais lhe pareceu um poema, pela profusão de imagens. “Quem sabe um dia...”, pensou entristecido.
Nas calmarias de sua confusa intimidade a paisagem tinha o fôlego de mil oceanos bravios. Rubem nutria-se das cores e do alento que, vindo no vento, mudava as formas das nuvens.
Tinha, nesses instantes, a permissão do devaneio. Olhava cada coisa com brandura, o lápis riscando arabescos no papel como se ele, sem presente, somente estivesse ligado ao passado e ao futuro, por um fio invisível.
No final da tarde um burburinho na biblioteca assinala a entrada dos policiais. Rubem estende as mãos e sai com eles.
No balcão ficam o jornal daquela manhã, recortado, e a notícia bombástica - “bibliotecário afoga a namorada e corta-lhe a garganta, no dia do noivado” -, colada na última folha de um bloco de notas totalmente escrito, onde se lia:
Naquela manhã caminhou calado, ao deus-dará: aguardava o supérfluo ser aceito por seus pensamentos. Enxergou-a em algumas mulheres e balançou a cabeça como se, sacudindo-a, pudesse espalhar as imagens pouco cômodas.
O excesso de voz sem possibilidade de vazão o levara a um mutismo total. O trabalho na biblioteca permitia-lhe mergulhar nos livros e ainda receber por isso. E ali a sua veneração pelo silêncio não era estranha, pelo contrário: era bem-vinda; e um ponto a mais.
Rubem gostava de ler sem nada dizer e de escrever sobre o que lia, ou sobre o que lhe ocorria, embora a escrita lhe parecesse um pouco vampira de emoções. Sentia-se esvaziado, como se cada palavra pudesse levar para o papel uma energia sua.
Não se insurgira contra o ritual de ter, para cada página lida, algumas considerações no pequeno bloco de notas que ela lhe havia dado. “Para tuas reflexões”, dissera Nympha sorrindo. Não o teria oferecido, se suspeitasse que um redemoinho insano nele aportaria.
Rubem galgara, a partir de então, mirabolantes pontes para encontrar o que não via, enredado em suas obsessões. Impenetrável, cenho franzido, ele se debruçara sobre possíveis indícios e com lógica científica seguira fios condutores. Embora diante de fragmentos, estivera convencido de que, nas partes, vislumbrava-se o todo. E seguira. Acreditando em suas próprias formulações falsamente comprovadas, chegara à reta final. O bloco de notas por testemunha.
* * *
Depois de muito perambular, Rubem chegou à biblioteca. Deu uma olhada rápida nos livros devolvidos e se comoveu com o trecho de Sophia de Mello Breyner Andresen: "As imagens atravessam os meus olhos e caminham para além de mim. Talvez eu vá ficando igual à armadilha da qual os pescadores dizem ser apenas água."
Escreveu no bloco um texto que mais lhe pareceu um poema, pela profusão de imagens. “Quem sabe um dia...”, pensou entristecido.
Nas calmarias de sua confusa intimidade a paisagem tinha o fôlego de mil oceanos bravios. Rubem nutria-se das cores e do alento que, vindo no vento, mudava as formas das nuvens.
Tinha, nesses instantes, a permissão do devaneio. Olhava cada coisa com brandura, o lápis riscando arabescos no papel como se ele, sem presente, somente estivesse ligado ao passado e ao futuro, por um fio invisível.
* * *
No final da tarde um burburinho na biblioteca assinala a entrada dos policiais. Rubem estende as mãos e sai com eles.
No balcão ficam o jornal daquela manhã, recortado, e a notícia bombástica - “bibliotecário afoga a namorada e corta-lhe a garganta, no dia do noivado” -, colada na última folha de um bloco de notas totalmente escrito, onde se lia:
Está roto de significados, o meu respirar.
Precisa de um convite, o meu olhar.
O gosto de sangue tremula, num frêmito de horror.
Extratos concêntricos de magia escaparam dos meus dedos;
no leito do rio a angústia silenciou e a água falou.
Num tablado vazio de palavras a imagem se criou
e, o criador, dela se apossou em ato poético:
gerou poesia no fundo da garganta.
Uma voz inquiriu, num tempo já sem margens:
- É tua a imagem que bate na minha, fazendo sombra na relva?
Precisa de um convite, o meu olhar.
O gosto de sangue tremula, num frêmito de horror.
Extratos concêntricos de magia escaparam dos meus dedos;
no leito do rio a angústia silenciou e a água falou.
Num tablado vazio de palavras a imagem se criou
e, o criador, dela se apossou em ato poético:
gerou poesia no fundo da garganta.
Uma voz inquiriu, num tempo já sem margens:
- É tua a imagem que bate na minha, fazendo sombra na relva?
Sonia Regina