online. Grata pela visita e leitura da minha prosa. Sonia Regina. prosa, somente prosa


Uma planta emblemática
Sonia Regina
“... pois o fim já traz em si
O signo do começo
E vice-versa...”
 
Claudio Parreira



Marina conferia o fruto: a cor intensa antecipava o sabor. Comia à janela e escutava, não tão longe, os estouros na pedreira e os latidos de Nero, o cão da oficina sempre amarrado à corrente.
A perfuração do túnel Dois Irmãos preparava a ligação da Lagoa com a Barra e isso era bom. Mas a iminência de um novo e melhor caminho não desatava as saudades antecipadas trazidas pela dinamite.  Dentro de poucos dias se mudaria dali: as casas simples dariam lugar à nova rodovia.
Sua palavra era vazia de nuvens e não conhecia linguagem senão aquela, singela e sem ornamentos.
- A primavera não precisa de palavras - dizia, como se estivesse proferindo importante comunicação - : é colorida, um borrão vivo.
Ainda que nem sempre prazerosa, a vida transcorria gostosa. Havia incômodos, não dores; contratempos, não obstáculos.
Tudo lhe era assim, fulgurante. Intenso, claro. Ainda menina, desconhecia o desafogo de um suspiro. Exteriorizava o que sentia. Bem, geralmente o fazia. Calava as interrogações.
Amava as flores do campo. Preferia-as às rosas e isso a incomodava. Achava que perdia algo e não atinava o quê. Admirava as rosas Mariquinhas de sua avó, que exuberavam no jardim. E a entristecia pensar que talvez não vingassem no vaso – já comprado  - para onde seriam transplantadas. Foi ler sobre as rosas, buscando encontrar um motivo para não se afligir: já era  suficiente encarar a saída daquela casa e as mudanças que viriam daí. Encontrou um livro de jardinagem na estante, que dizia:

“Às rosas são atribuídos significados diversos, de acordo com as suas cores. A roseira é uma planta tão emblemática que até mesmo as suas folhas tem um significado especial: esperança.”
 
Não compreendeu porque a roseira era emblemática, mas gostou de captar a atmosfera de vida naquela escrita e foi de novo olhar as Mariquinhas. - Sim, era linda a vida das rosas: era mesmo caprichada, pensou. O movimento do texto conectara esse capricho e mentalmente agradeceu ao autor por tê-lo passado a ela, com sua escrita: - a roseira se dará bem no vaso, concluiu. Era boa leitora: deixava-se envolver pela atmosfera de mistério e comparecia ao encontro com o autor, nas páginas do livro.
Sentou-se no banco do jardim e continuou a leitura.

“Durante a Idade Média, as rosas eram muito cultivadas nos mosteiros, onde deveria haver, pelo menos, um monge especialista em botânica que estivesse familiarizado com as virtudes medicinais da rosa e de flores em geral.
Contam as histórias de amores antigos que Afrodite teria dado uma rosa ao seu filho Eros, o deus grego do amor. A rosa tornou-se um símbolo de amor e desejo. Eros deu a rosa a Harpócrates, o deus do silêncio, para induzi-lo a não falar sobre as indiscrições amorosas de sua mãe. E, assim, a rosa se tornou também um símbolo do silêncio e do segredo.” 
 
Marina conhecera alguns mitos em uma publicação em quadrinhos, mas nenhuma mencionava a rosa. Foi buscar outro livro, onde leu sobre Afrodite e Eros - não encontrou Harpócrates:
Afrodite - deusa grega da beleza e do amor
Eros - deus grego do amor
Deixou os livros no banco, quando saiu para a praia com uma amiga. O sábado ensolarado de inverno lhe prometia uma cor dourada para a matinê de domingo. O mar estava uma piscina e os matizes de verde se complementavam. Um panorama poético com extraordinária força nas imagens eram películas suaves que recobriam a realidade. Ficou olhando o horizonte, inebriada.
O ar estava morno desde cedo e isso anunciava chuva. Ela chegou subitamente, pegando as meninas desprevenidas. Riram muito, tentando fechar a barraca de sol e juntar os apetrechos praianos. Esteiras, havaianas, shorts, blusas e muita areia foram parar nas bolsas de palha. Chegaram em casa encharcadas, mas felizes.
Marina só se lembrou dos livros quando, já no apartamento, viu que a roseira não brotava. Todas as rosas e folhas haviam caído. O aspecto era lastimável. O livro de jardinagem falava algo sobre esperança. Haveria chances?
Procurou o livro na estante. Nada. Perguntou à mãe.
- Lembra daquela chuva que você pegou na praia, filha? Pois os livros ficaram ensopados. Deixei-os secar e guardei-os, mesmo com umas folhas faltando, outras despregadas. Estão no quarto de empregada, em uma caixa: eu sabia que um dia iria procurar por eles...
Marina percebeu a tristeza e a censura no tom da fala da mãe. Não precisava de carões: aprendia vivendo, com revezes como esses.
Foi em busca de um alento e remexeu nas caixas. Um mundo de recordações! Retratos, redações de colégio, entradas de teatro, guardanapos, jornais. No fundinho do armário uma caixa pequena e, nela, os livros. Folheou o de jardinagem: faltava a página que falava das rosas. Voltou à estante, decidida a também saber sobre o deus do silêncio, cujo nome não mais lembrava. Talvez procurando por ele achasse algo sobre a rosa. Na enciclopédia Delta Junior, o verbete: 

"deuses egípcios - Harpócrates, o deus egípcio da discrição e do silêncio, simboliza o incessante renovar da vida, tudo aquilo que perpetuamente renasce devido às alternâncias da vida e da morte."
 
Marina chorou muito, naquele dia. Aguou os galhos despidos da roseira, colocou-a no sol. Fez isso todos os dias. Sem tecer considerações sobre a esperança de vida, encheu-se dela. Evitava pensar, nesses momentos: mantinha-se em silêncio, como num ritual, surda aos embates do pensamento. 
Era já outubro quando viu uma folhinha na roseira. Chamou a mãe, a avó, mostrou ao pai quando ele chegou do trabalho. Contou-lhes que se lembrara do que o livro dizia: as roseiras eram emblemáticas e suas folhas significavam esperança.
Num relance compreendeu tudo! As pétalas se desenroscam dos botões silenciosamente, as flores se doam, abrindo-se à vida. Com amor os ciclos se repetem...
“... pois o fim já traz em si o signo do começo e vice-versa...”
E a folha pequena o indicava. Seu despontar era a esperança do novo princípio. A roseira Mariquinhas se aprontara para atender ao chamado da primavera.


 

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©2010 Sonia Regina