online. Grata pela visita e leitura da minha prosa. Sonia Regina. prosa, somente prosa

Despedimento



Diziam que estava em paz e seus dias iam bem. As tardes seguiam a reboque das manhãs, a angústia à frente do esquecimento. Núbia chegava à porta, olhava a lagoa Rodrigo de Freitas ao longe. Sentia-se só, apesar do vozerio dos vizinhos. “Talvez devesse ter tido filhos...”, pensou.

O trabalho consumira sua juventude e ânimo: nada mais desejava. Do tempo de contentamento haviam sobrado algumas fantasias, entretanto. Concretas, palpáveis, de tecido e paetês. Umas, nunca vendidas, lembravam-lhe suas costuras varando noites felizes; outras, usadas por ela mesma, desfilavam no armário momentos de uma história pessoal bem vivida e mal contada.

Apesar de muito reservada tivera sempre a casa cheia, nos áureos tempos. Era jovem e bonita, ganhava bem, promovia reuniões nas quais recebia com carinho a turma de compositores da Escola. Naquele quintal nasceram sambas imortais. E lá conhecera Dadinho, o marido. Amor à primeira vista, alegria infinita.

Agora vivia sozinha, não mais desfilava na avenida, afastara-se da Escola. O marido vinha para o Rio, em certas datas. Também morava só, mas no interior tudo era menos complicado e a solidão não pesava.

Não sabia mensurar o quanto gostava dessas visitas. Sem mais ares de império, Dadinho chegava brandamente àquela casa cuja monarca absoluta era a poodle negra Princesa Maya (que também atendia por ‘gata branca’). Era ela a sua companheira de todos os dias, era quem acudia com um afago quando chorava, era quem se deitava a seus pés quando, sentada embaixo da mangueira, espichava o olhar comprido morro abaixo, nunca encontrando nada além do vazio.

Núbia vivia da venda das refeições que fazia, à hora do almoço. Ganhara da diretora da escola do bairro a aparelhagem ultrapassada onde era colocada a merenda das crianças. Um sistema simples - mas ainda eficaz - de aquecimento lhe garantia o estilo caseiro de servir, mais pessoal que as quentinhas de alumínio. Muitos o preferiam, além de acharem exótica aquela anfitriã bem disposta, sempre com uma história para contar. Vez por outra lhe levavam um livro novo que, depois de digerido por ela, retornava aos fregueses como suplemento alimentar. “Todos precisamos nutrir a alma”, dizia.

Não mais costurava, o que não a entristecia tanto quanto a visão não andar bem. Gostava de ler. Os livros foram, para ela, mais do que pontes. Se durante tantos anos a ligaram a um universo desconhecido e promitente, também lhe trouxeram conhecimentos. Amava as letras, não era indiferente à poesia. Contudo, havia um mundo sem palavras ao qual descia para percorrer seus próprios subterrâneos. Lá encontrava as raízes das ervas daninhas, das parasitas cujo poder obscuro tornou empedrados alguns sonhos. Deixava-as na secura e se omitia, não voltando para aguá-las – ou cortá-las.

Lembranças expulsavam o sono e explodiam a dor no travesseiro. Ninguém sabia, ninguém via. Talvez por isso se espantassem tanto ao ver a pouca misericórdia daquela mulher culta, solícita e solidária, que compartilhava suas leituras e recebia os fregueses com o mesmo carinho com que recebera os compositores e outros membros da Escola, nas rodas de samba que promovia.

Eduardo já não era o Dadinho esfuziante e seguro: estava envelhecido, trôpego, sem trabalho. Com uma ternura deslocada naquele ambiente ressecado, aceitava o que Núbia lhe desse e elevava à categoria de oferenda qualquer gesto ou olhar. Amava-a, ainda.

Núbia não mais lamentava somente tolerá-lo. Irritava-se com a humildade, beirando a humilhação, daquele homem antes tão orgulhoso. Já não o admirava, aceitava suas visitas como se fossem as de um parente qualquer, não lhe dava chance alguma – de nada. Fartara-se de tristeza e desolação.

Seguira sozinha, porque assim se configurara o cenário. Entretanto, não lhe era indiferente, aquele homem. Odiava aquela presença, tanto quanto amara.

Era, com ele, nada compassiva. Pouco misericordiosa. Não lhe dava da comida fresca que fazia a cada dia: “são para quem paga”, dizia. Contudo, estavam destinadas a ela e à sua rainha. A Eduardo cabia uma panela de feijão e uma de arroz, cozidos em água e sal, uma vez por semana. E ovos. Pimentões e couves do quintal, se ele os colhesse e preparasse. Na mesa uns pães nem sempre frescos, farinha. E mamões, no mamoeiro.

Os fregueses não entendiam, mas nada perguntavam – nem os mais próximos – quando viam a Princesa Maya regalar-se com a carne cuidadosamente preparada por Núbia, enquanto Seu Eduardo tantas vezes comia silenciosamente os ovos encharcados de gordura que a mulher lhe trazia.

* * *

A casa, que foi um dos berços do samba, hoje abriga aglomerados de palavras. Núbia escreve num caderno desabafos perenes, escrituras densas. A assinatura bloqueia o anonimato e há força nos textos que não se prestam a enxugamentos e se avolumam, na proporção direta de um dia que se completa como um reservatório que se enche sem válvula de escape.

Diz o mais recente escrito, que Núbia gostaria de publicar:

“Há uma tristeza nas veias, nenhum sangue carrega os aniversários que deixaram de ser comemorados. Não que me incomode com o nascimento ou a morte de quem quer que seja. A história se encarrega de registrar tudo, até o samba que invade a rua e é passarela de pessoas sem rumo certo.

Mais do que isso, vibro e canto aos que não desfilaram nas avenidas. Àqueles que, quase sorrateiramente, souberam encher de afeto os dias - e mesmo as noites -, sem nada pedir. A eles devia ser dado o troféu, o prêmio, o lugar no podium. Aos que, de uma maneira ou de outra, estiveram por trás de cada passo dado, atrás de cada embaixada, de cada performance.

A alegria não é contagiante à-toa. Não é à-toa que na avenida o desfile acontece para os mal-amados, mal-colocados, mal-vistos. Não há nem haverá no mundo lugar para um luxo que venha do lixo, para um acontecimento somente mágico. Inexiste na sociedade um passista que dance conforme a dança. A dor pinga mais que o suor, translúcida como a cachaça. O descrédito é imenso, o desprezo é maior que a curiosidade que enche os camarotes de estrelas. Que não se acendem para todos.

A revolta inexiste nesse contexto de ilusão. A besta passeia sem nó, por pontos obscuros. Não tem lugar o menor resquício de realidade. Na quarta-feira as cinzas não são somente do carnaval. Sonhos queimados se avolumam na mente e nos corações dos malditos.

Somente sobrevivem as lambidas dos cães. Desses que nunca saíram da linha, que jamais se ativeram além dos limites de suas coleiras e guias. A eles dedico este artigo.

Núbia dos Prazeres”



Sonia Regina


 

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©2010 Sonia Regina