Releituras
4 contos do primeiro semestre de 2009
4 contos do primeiro semestre de 2009
O sentido das realidades precisas
Gaúcho não era gaúcho. Ganhara o apelido na juventude, quando os amigos souberam que morara em Porto Alegre. Extremamente sensível, era perspicaz e muito reservado. Pó de ostra sempre foi e era ainda o seu remédio homeopático.
A leitura o fascinava. Era bom aluno, escrevia bem. Não tardou a participar dos concursos no colégio – e a ganhá-los.
A literatura era a arte que mais apreciava, mas sabia que não viveria dela. Formou-se em Administração de Empresas, chegou a diretor da empresa onde sempre trabalhou, desde estagiário. Casou-se, teve filhos, separou-se. Uma vida comum e mesmo banal, se não fosse sua arte. Pública, mas com a qual lidava de maneira íntima e solitária.
Conheceu Nympha no lançamento do seu quinto livro. Linda, suave aparência, mignon. Mulher prática e objetiva. A subjetividade que Gaúcho guardava nas letras desvelou-se. Fazia poemas, dava-lhe presentes, cuidava dela. E ela dele. Viviam bem juntos, completavam-se.
Aos cinqüenta teve um enfarte. Uma bomba, foi difícil encarar aquela rasteira da vida. Gaúcho não fumava, era um homem parrudo, fazia exercícios e tinha alimentação saudável, como havia sido possível? Aposentado pela perícia médica, dedicou-se à literatura. Sua produção crescia, em proporção direta ao afastamento do convívio social. O que, entretanto, teve conseqüências graves. Uma labilidade emocional e uma sensibilidade exacerbada que não mais cabiam em seus personagens. Gaúcho filosofava, pensava demais, só ficava bem em frente ao computador ou nos momentos em que Nympha o convocava. A ela nada negava. Mas sentia um desânimo terrível para fazer o que quer que fosse. Preferia ficar escrevendo, contando histórias, vendendo-as. Acostumou-se ao sucesso. E à emotividade. “Jamais abrirei mão dos meus escritos”, afirmava, “eles é que me mantém vivo”. Ledo engano.
Chorava com altivez, mas não era arrogância: certo brio lhe erguia a cabeça para esvaziá-la de todas as lágrimas, como um fio de prumo que tentasse materializá-las na vertical. Sabia que não bastava secar as que escapulissem, havia um manancial em seu interior.
Deixar a réstia de sol entrar pela janela aberta lhe trazia aos lábios o sorriso sereno da alma de leão, que reencontrava o respeito por si. A incompetência para a vida era uma sensação vinda do isolamento: “preciso de um trabalho coletivo”, pensava.
Resolveu deixar – não sabia por quanto tempo - as imagens suspensas, junto com os escritos: queria reinvestir na vida com o físico, o libidinal.
Meditar lhe sossegava os pensamentos e a pulsão do verbo: “a mente se aquieta e a força de um fogo agindo sobre os metais cuida das rasuras causadas por uma sensibilidade exacerbada”, pensou. Disse para a mulher, ainda comovido com o longo abraço:
- Teus abraços me fazem bem. Não os poupa, nestes momentos em que não comando a altura dos afetos.
Estava ciente de como o intelecto mobilizava as palavras, e tentava domá-lo. Queria sentir a realidade, deixar que sua humanidade o percorresse livremente. Essa possibilidade lhe trazia uma alegria - contida. Rejubilava-se internamente com a perspectiva da dor dobrando-se à força anímica e vital de seu corpo.
Encostou os afazeres num canto do escritório e saiu. Cumprimentou os vizinhos com um aceno de cabeça e prestou atenção ao piso da calçada. Olhou a velocidade dos carros quando o sinal abria. Impedir o fluxo das imagens que criava lhe propiciava instantes raros – uma janela mais apropriada, embora ainda intensa, por onde transitavam as emoções – de tranqüilidade.
Viver o mundo palpável era imperativo. “Afeto não resolve tudo. O dia não anula a noite”, pensou. Tomava consciência dos opostos nos vestígios do cotidiano. Não os tinha como contraditórios, mas agora deixava essas questões à filosofia. Manter-se em dia culturalmente era importante, tanto quanto retomar a vida social e esportiva: saúde e prazer.
Seguiu por uma rua que nunca percorrera a pé. O aroma da hora do almoço lhe embrulhava o estômago, mas caminhava com firmeza. Sem muito esforço.
Imprimia em seus passos a grande resolução: se a arte se integrava à vida e o ser feliz é aquele que dela faz uma obra de arte, Gaúcho queria referir seu ser humano e normal enquanto obra de arte nesse mundo de fragmentações, até que a liquidez da escrita voltasse a correr em suas veias como um terceiro incluído e conciliado.
Beleza concreta sem sabor ou aroma, o rigoroso branco do céu cantava aos seres inteiros e reunidos. A poética no ar - real - era mais que uma sensação.
Sentou-se num banco, no calçadão da praia. A bruma cobria o horizonte, mas estar próximo à imensidão do oceano fortificava seu espírito marítimo: “não se enxerga o estado natural de nada”, refletiu.
A natureza fora um tema recorrente em suas escrituras, com um prestígio readquirido de alguns mitos românticos. A consciência de que era passível de uma representação autêntica e pouco ingênua impunha a Gaúcho deixar o lugar onde estivera encoberto por um verbo pleno de imagens interligadas.
Procurara intensamente o singular no mundo e na natureza, buscara escrever sobre cada coisa que lhe parecia estar à espera de quem a traduzisse, para conceder-lhe existência verdadeira.
A natureza, sentida com nostalgia, certamente se refletira em suas palavras. Embora mais profundas que uma simples verbalização, as imagens estabeleciam relações de significado que oferecia aos seus leitores.
Gaúcho percebia ter-se tensionado além dos limites. Mudara... Dava-se conta disso olhando para trás. Sua busca do único arrefecera. Era agora um artista cuja ênfase dada à obra não era excessiva, não mais ignorava os demais elementos que a compunham - principalmente os pessoais. O cuidado para não projetar-se na obra, o receio de escrever algo confessional se fora. Expressava-se, simplesmente, ciente do seu papel de escritor e do que ia além.
Suavemente a transformação se dera e as feridas começaram a ser curadas. Foi fundamental Gaúcho ter fornecido à sua alma o sentido das realidades precisas.
Exterminara com coragem guerreira os padrões pessoais que amava. “Não se enxerga a natureza”, testemunhava.
Feliz era uma palavra passível de ser vivida.
Sonia Regina