Canto Primeiro
A Maria Gabriela LLansol
Sonia Regina
A Maria Gabriela LLansol
Sonia Regina
[17.2.10]
Branca tinha horror a vidro partido, a estilhaços. Foi à cozinha. Nenhum copo ou prato quebrados. Olhou pela janela... Nada, tudo na mais santa paz. Retomou os papéis.
Não tinha senão folhas com trechos de diferentes livros daquela autora por quem se apaixonara em dezembro de 2007. Releu:
“Abel sentou-se no chão. Via Sara de perfil, debruçada sobre o alguidar em que a brancura dos pratos purificava a água suja.
- Sara, tudo o que existe faz aumentar a luz.
- Como?
- Metes as mãos na água ela sobe no alguidar. Metes nesta casa uma cama, um armário e a luz também tem de aumentar. Tem de ir para algum sítio a luz que já não está no lugar da cama e do armário.
- Mas não é assim?
- Não. Pensei isto de manhã, enquanto guiava a camioneta.
Sara sentou-se também no chão, em frente de Abel. Os seus pés não tinham meias, nem sapatos.
As palavras "Sara, tudo o que existe faz aumentar a luz", " Metes nesta casa uma cama, um armário e a luz também tem de aumentar", eram o vidro que desunia os corpos de Sara e Abel. (1)
“Foi daqui o barulho”, cogitou. “Eu quebrei esse vidro”. Já não era a primeira vez que isso acontecia. Algo se manifestava quando lia ou via imagens que a puxavam para a cena.
Desde pequena o cinema a encantava. Deliciava-se com o aroma de terra, nos filmes de aventura. Quando soube que não havia cheiros nos filmes, ficou impactada – mas não deixava de senti-los, se a impressão era forte. “Imagens e escritas vivas estabelecem contato direto e imediato com o espectador ou leitor. E também o silêncio”, pensava.
Branca admirava Maria Gabriela LLansol, ainda que nunca tivesse lido um livro inteiro. Lia excertos que encontrava na web e aquela energia tocava-a em cada linha. Principalmente nos ‘traços contínuos’, que não entendia bem – mas sentia. Eram um silêncio que Branca percebia. Sobre eles LLansol escrevera:
"_____________________________ o irritante traço contínuo.
É apenas uma dobra e um baraço. O texto dobra, efeito de colagem. O texto suspende o sentido, à espera de dizer exacto. Há frases que só completei anos depois; há frases que, no limiar dos mundos, não devem ser escritas por inteiro; há frases cujo referente de sentido será sempre obscuro. Se eu pretendesse escrever um texto sempre limpo - tiraria o traço. Onde não soubesse, nada escreveria. Mas como iria saber que ali não soube, ou nem sequer me pertencia saber? O texto é limpo, e por passajar. Onde o traço é apagado, vê-se claramente o raspar da borracha. Deixar o traçado." (2)
Branca Martins era engenheira, jovem executiva. Levava uma vida acadêmica bem sucedida que lhe trazia muito movimento entre o escritório e os corredores da universidade. Desaguavam sempre, nos papéis cheios de traços e números, as palavras. Branca entendia-se com elas. Gostava de provocar [des]hábitos de sentido, discordava que fossem afeitas a cumprir sinas. Lia, escrevia frases soltas como “guardo ventos e tempestades; noites e penumbras eu transformo; desenho sóis em cada esquina”. Subvertia significados. Foi num tempo desses que haviam vindo os poemas. A prosa mesmo chegou a partir da leitura deste texto de LLansol:
"O meu texto não avança por desenvolvimentos temáticos, nem por enredo, mas segue o fio que liga as diferentes cenas fulgor. Há assim unidade, mesmo se aparentemente não há lógica, porque eu não sei antecipadamente o que cada cena fulgor contém. O seu núcleo pode ser uma imagem ou um pensamento, ou um sentimento intensamente afectivo, um diálogo." (3)
Branca foi procurar ‘cenas fulgor’ em suas frases. Encontrou algumas que saltavam, enquanto lia. Descobrira os fios que sempre lá haviam estado, alinhavando pré-textos. E escreveu o primeiro, com o pensamento em Maria Gabriela Llansol - sem ter lido o excerto d’O livro das Comunidades. Acaso? Coincidência? “Meu Deus, que importa o fundamento?”, diria Llansol. Foi o que escreveu no Inquérito às Quatro Confidências.
Texto 1
Branca Martins
O amanhecido frio insiste em lindezas. A cidade se envolve em paisagem justa. Chove. Um aguaceiro cai e as palavras também líquidas são presença e anima.
Eu, que pouco creio, rezo para tua alma que me funda nos preparativos.
Nas águas deste Rio lavo meus cabelos e em rito matinal me preparo para o encontro com o rei. Serei seu arqueiro predileto e ele conhecerá meu poder.
Não temo o grafite cortante que deseja comprovar que meu braço e flecha são um só: diamante pleno, e uno. Não preciso mirar o alvo para acertá-lo e não existem regras de normalidade a ditarem minha arte. Galgo meu caminho e imprimo, na estrada, as conquistas. No discurso que será lei, e livro, a primavera de cada um dos meus passos - como um selo real.
Em meu colo - na acolhida de vida e cor - a celebração, por fim.
“eu sou feliz na alegria não sentimental que se manifesta;
o que me fraccionava, partiu:
o que tende para um limite finito, desapareceu;
a mata espessa e o grande bosque florescem;
dobro-me conforme o número, género, grau, modo, tempo,
e pessoa que sou vossa.
E assino.”
Maria Gabriela Llansol - O Livro das Comunidades
[continua]
Foto de Antonio Pedro Ferreira
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(1) Maria Gabriela Llansol. excerto de O Chão das Três Árvores. In: Os Pregos na Erva. Edições Rolim, 1987
(2) Llansol, Inquérito às Quatro Confidências. Lisboa: Relógio d’Água, 1996
(3) Maria Gabriela Llansol. Um falcão no punho, Lisboa: Rolim, 1985
(3) Maria Gabriela Llansol. Um falcão no punho, Lisboa: Rolim, 1985