online. Grata pela visita e leitura da minha prosa. Sonia Regina. prosa, somente prosa


Canto Terceiro

                      A Simone de Beauvoir

Sonia Regina
[21.2.10]


Ele interrogou-a com o olhar espantado e nada disse. O silêncio era o menos desconfortável que podia lhe oferecer em tão pouco tempo – ambos tinham aulas a dar. Tocou levemente a mão da amiga e sentiu uma pressão na sua. Ela entendera o carinho, e agradecia; seu coração ouvira o pensamento do dele:

“envelhecer não é, necessariamente, renegar-se”.

Carlos levantou-se, alisou seus cabelos e deu-lhe um beijo, dizendo peremptoriamente:
- Te encontro aqui, às 18h.
Branca deu uma volta no bosque, antes de subir. Bendizia aquele campus desde que chegara àquela universidade, como aluna. Ali as idéias se acalmavam e o coração pensava.
Chegou menos tensa à sala de aulas onde ministrava Fontes e Controle da Poluição Industrial, no 7º período. Era professora do Departamento de Engenharia Ambiental durante três horas por semana e, no tempo restante, estava no escritório do Rio de uma empresa de Engenharia e Consultoria Ambiental, sediada em São Paulo.
Vinha à PUC dois dias: um para Estudo de Casos e o outro para a parte teórica. A bibliografia do curso, totalmente em inglês, não lhe era um problema: dominava a língua. Branca vinha se saindo muito bem. A turma lotada, além dos comentários do coordenador do Departamento, o atestavam.
Carlos dava aulas no 8º período e era seu colega na empresa de consultoria. Um bom amigo. Mais velho e mais antigo nas funções, ajudava-a bastante. Acompanhara seus momentos difíceis e extremamente complicados, desde antes da morte do marido. Marcos tivera um aneurisma cerebral e havia se recusado a fazer a cirurgia – tida como de alto risco.
Enquanto os alunos trabalhavam no caso que havia proposto, Branca pensou:


“Que é que está acontecendo? É isso minha vida? Era só isso? Será que isso vai continuar sempre?”

Deu uma ligada para a diarista, dizendo que ia demorar. Uma combinação entre as duas permitia que Branca se estendesse fora de casa, se necessário. Havia necessidade: deixara o amigo preocupado. Na verdade, precisava de um colo. Mas o que lhe diria? Branca era implacável consigo mesma, quando refletia:


“Tornei-me a meus próprios olhos um personagem de romance. Como toda intriga romanesca exigia obstáculos e malogros, inventei-os.”

Alguns amigos já sem paciência concordariam com seus pensamentos. Uma das poucas leais a qualquer estado de Branca havia lhe dito:
- Pensa bem, minha querida. Se, quando jovem, você imaginasse como seria na sua idade, o que desejaria? Exatamente o que tem: uma filha maravilhosa, saudável, um casamento que deu certo enquanto durou, amigos, um apartamento próprio, independência financeira, um bom emprego, bom salário... O que há? Por que esse desânimo? Não se afaste assim das pessoas e aproveite a vida!
Branca havia se calado, sem ter o que dizer.
Ficava muito sozinha. E pensava, ou escrevia. Inventara um caderno de anotações íntimas – talvez um dia viesse a ser uma autobiografia: não um diário, pois não era todo dia que escrevia - por brincadeira, mas dia-a-dia ele se configurava num instrumento de organização. O fluxo de suas idéias era imenso e célere. Procurou-o, na bolsa. Os alunos ainda trabalhavam no caso e ela entregou-se à escrita de um novo capítulo, que chamou de Meus Amigos.


“ O que os assustava era o que havia em mim de mais obstinado: minha recusa a uma existência medíocre, em que consentiam de um modo ou de outro, e meus esforços desordenados para sair dela. Tentei encontrar um motivo: “Não sou como os outros, mas resigno-me.” Não me resignava, porém. Separada de outrem, não tinha mais ligação com o mundo: este passava a ser um espetáculo que não me dizia respeito. Renunciara sucessivamente à glória, à felicidade e a servir; agora não me interessava mais por viver.”

O tempo da aula acabava, alguns alunos já traziam o relatório. Branca arrumou-se para sair da sala, e desceu.
Carlos a esperava como dissera, no bar das freiras. Recebeu-a sorrindo, o que a comoveu. Sorriu, também.
- Então?
- Dezoito em ponto! O que deu em você, Branquinha? – disse, rindo.
- Não sou mais impontual, Carlos. Ando mudando... E querendo mudar. Pode continuar me chamando assim, mas eu não gosto. Não me agrada a referência ao meu jeito suave e doce - quase infantil.
- Mas... mata? – Disse ele, se referindo ao término da conversa antes da aula. - Como, mata?
- Aquilo foi um pensamento alto, meu amigo.
- Conta.
- Não quero mais ser doce e meiga. Marcos era doce...
Caiu num pranto convulsivo. Carlos abraçou-a, puxando-a para longe dali. Àquela hora já quase não havia ninguém do turno da tarde e o turno da noite começava às 19h.
- Minha querida...
Foram até a praia, conversaram muito. Branca havia se refeito e contado a Carlos de seus medos. Sentia-se falha, e se envergonhava. Sempre fora forte e decidida, segura de si. Nunca sua auto-estima despencara como agora e tinha medo.
- Você ainda está deprimida, Branca. Tem se tratado?
- Sim, tenho.
Passearam um pouco, de carro. O mar estava calmo, o ar quente, a música era suave. A presença de Carlos e o clima sereno deixaram Branca tranqüila.  


“Em um coração bem equilibrado, a amizade ocupa um lugar honroso mas não tem o brilho do misterioso amor, nem a dignidade sagrada das ternuras familiares. “

Ao chegar à casa não encontrou ninguém. Nenhum bilhete. Supôs que Manu e a diarista tivessem descido com o cachorrinho. A noite estava mesmo quente...
Foi tomar um bom banho, para jantar.


[continua]


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Os textos em itálico são de Simone de Beauvoir. Memórias de uma moça bem comportada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983

 

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©2010 Sonia Regina