Canto Quarto
A Clarice Lispector
Sonia Regina
[28.2.10]
Manuela entrou em casa gritando:
- Mãe! Maaanhê...
- Tou aqui, Manu, no banheiro.
- Imagina!
- Ah, filha, tudo que menos quero agora é imaginar. Conta pra mamãe?
Manuela fez uma carinha de desapontamento, mas a animação era maior:
- Pingo! Está namorando, e vai casar.
- O quê?
- É, mãe, já combinamos tudo.
- ...
Branca terminou de se arrumar, jantaram, com Manuela tagarelando:
- Saímos pra passear e o Pingo fez amizade com uma cachorrinha da mesma raça que ele. Ficaram brincando, se cheirando...
E continuou falando pra mãe do acontecido - de como era linda a cadela Maia, dos filhotes que podia ter com Pingo - até ir dormir, feliz e exausta.
Branca estava também cansada, exaurida. Fora um dia cheio e nada fácil. Ainda que não se sentisse em paz, conseguia se manter em pé e lúcida. A diarista veio se despedir.
- D.Branca, eu posso dormir aqui? Está tão tarde...
- Claro, Lúcia. Pega roupa de cama na cômoda, pode levar um dos travesseiros da minha cama. E come qualquer coisa, menina! Saco vazio não fica em pé.
- D. Branca...
- O que é, Lúcia?
- Eu queria fazer um pedido. A Senhora podia tirar uma coisa no seu cartão de crédito?
- Amanhã, Lúcia, amanhã falamos.
Branca tinha uma relação peculiar com as empregadas. Era muito próxima, embora mantivesse uma fronteira clara. Marcos dizia que não existia patroa assim e, nas conversas com ele, Branca praticamente discursava. Ele a ouvia com atenção, sereno. Aquela mulher o encantava. Ela discorria sobre como nunca tinha sido assaltada numa cidade como o Rio de Janeiro, nem roubada, ou sido alvo de qualquer ruindade. Ainda que não houvesse Deus ou entidades espirituais, acreditava haver algo que a protegia. O Amor, talvez.
Antes de dormir escreveu no seu caderno de anotações íntimas:
A Clarice Lispector
Sonia Regina
[28.2.10]
Manuela entrou em casa gritando:
- Mãe! Maaanhê...
- Tou aqui, Manu, no banheiro.
- Imagina!
- Ah, filha, tudo que menos quero agora é imaginar. Conta pra mamãe?
Manuela fez uma carinha de desapontamento, mas a animação era maior:
- Pingo! Está namorando, e vai casar.
- O quê?
- É, mãe, já combinamos tudo.
- ...
Branca terminou de se arrumar, jantaram, com Manuela tagarelando:
- Saímos pra passear e o Pingo fez amizade com uma cachorrinha da mesma raça que ele. Ficaram brincando, se cheirando...
E continuou falando pra mãe do acontecido - de como era linda a cadela Maia, dos filhotes que podia ter com Pingo - até ir dormir, feliz e exausta.
Branca estava também cansada, exaurida. Fora um dia cheio e nada fácil. Ainda que não se sentisse em paz, conseguia se manter em pé e lúcida. A diarista veio se despedir.
- D.Branca, eu posso dormir aqui? Está tão tarde...
- Claro, Lúcia. Pega roupa de cama na cômoda, pode levar um dos travesseiros da minha cama. E come qualquer coisa, menina! Saco vazio não fica em pé.
- D. Branca...
- O que é, Lúcia?
- Eu queria fazer um pedido. A Senhora podia tirar uma coisa no seu cartão de crédito?
- Amanhã, Lúcia, amanhã falamos.
Branca tinha uma relação peculiar com as empregadas. Era muito próxima, embora mantivesse uma fronteira clara. Marcos dizia que não existia patroa assim e, nas conversas com ele, Branca praticamente discursava. Ele a ouvia com atenção, sereno. Aquela mulher o encantava. Ela discorria sobre como nunca tinha sido assaltada numa cidade como o Rio de Janeiro, nem roubada, ou sido alvo de qualquer ruindade. Ainda que não houvesse Deus ou entidades espirituais, acreditava haver algo que a protegia. O Amor, talvez.
Antes de dormir escreveu no seu caderno de anotações íntimas:
“Há três coisas para as quais eu nasci e para as quais eu dou minha vida. Nasci para amar os outros, nasci para escrever, e nasci para criar meus filhos. O ‘amar os outros’ é tão vasto que inclui até perdão para mim mesma, com o que sobra. As três coisas são tão importantes que minha vida é curta para tanto. Tenho que me apressar, o tempo urge. Não posso perder um minuto do tempo que faz minha vida. Amar os outros é a única salvação individual que conheço: ninguém estará perdido se der amor e às vezes receber amor em troca.”
* * *
O dia amanheceu claro e muito úmido. O orvalho gotejava das plantas e a névoa se sustentava pouco acima do mar, como um manto etéreo. Caminhar às 6h na beira da praia fazia bem a Branca. Respirar aquele ar a renovava.
Branca não se cansava de se espantar. Achava a natureza misteriosa, dadivosa - nunca se repetindo. Fosse um verde novo numa flor que desabrochava ou uma pétala caída. Não precisavam de interpretação aquelas cristalinas mensagens de vigor.
Caminhava devagar, pisando na calçada como lhe ensinara o monge budista Thich Nhat Hanh: em cada passo imprimindo no chão uma marca sua, como um selo imperial. Branca contava as inspirações e expirações e praticava a meditação andando.
Apreciava esses momentos sozinha, mas a sensação de solidão lhe tirava a serenidade. Logo vinha a nostalgia e um aperto no peito. Sentia-se carregando o mundo e desejava pedir licença e descer. Sentou-se em um quiosque, pediu uma água de coco e escreveu, enquanto a tomava:
“Quando criança, e depois adolescente, fui precoce em muitas coisas. Em sentir um ambiente, por exemplo, em apreender a atmosfera íntima de uma pessoa. Por outro lado, longe de precoce, estava em incrível atraso em relação a outras coisas importantes. Continuo, aliás, atrasada em muitos terrenos. Nada posso fazer: parece que há em mim um lado infantil que não cresce jamais.”
Branca se questionava demais. Desconfiava de si mesma e se exigia muito. Tinha uma inconformação que a impulsionava e, entretanto, a incomodava: tornava fugazes os pequenos prazeres. Adorava ser engenheira - tinha vocação -, mas sua paixão era a literatura. O prazer com a escrita a acompanhava desde cedo. Conseguia diluir ou estender emoções, com aquelas palavras que não relia: escrever lhe bastava.
“O que é que se tornou importante para mim? No entanto, o que quer que seja, é através da literatura que poderá talvez se manifestar.”
Fechou o caderno, pagou a conta e voltou pra casa – quase em paz. Não tinha idéia da surpresa que a esperava.
[continua]
________________________________________________________
Os textos em itálico são de Clarice Lispector, em Aprendendo a viver. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2004.