online. Grata pela visita e leitura da minha prosa. Sonia Regina. prosa, somente prosa

Canto Segundo
                         
              A Lou Andreas-Salomé
  
Sonia Regina
         [19.2.10]



Tinha que arrumar o quarto de empregada. A diarista havia vindo pra lhe ajudar. Manu dormia e o tempo estava feio – nenhum chamado para a indolência, fora a vontade de não ter vontade - de nada.
“Acordei cedo pra isso, preciso agir.” Mas ficava no sofá, tomando café... e aqueles malditos remédios. Odiava ter um estado químico alterado no corpo.
Algo faltava. Um bolo na garganta indicava angústia, o tédio não prometia bons momentos. Estava farta dos maus e tentara despejar tudo no papel. Mas as sensações estavam partidas e os destroços de palavras arranharam seu ser - estático e impactado com os cacos. Levantou-se e foi tratar das arrumações.

“O que significa perda se torna sinônimo de volta a si próprio”

Branca tinha uma filha querida, boa casa, diarista para fazer o serviço doméstico e um cachorro que a esperava à porta - saltitante e terno. Por vezes refletia se a presença de um companheiro a tornaria mais feliz.
A filha era um encanto. Amava-a profundamente, era o presente que a vida tinha lhe dado. Boa mãe, carinhosa e atenta, não falava alto nunca. Acordar muito cedo passou a ser um prazer - gostava de cuidar de Manuela. Jamais esqueceria aqueles momentos de comunhão num tempo só delas.

“Não defenda nenhum princípio, mas algo de bem mais maravilhoso: algo que está em nós e que queima como o fogo da vida!!!”

Conversavam muito. A irmã de Branca chegou a assinalar que falava demais com a menina. Mas ela acreditava que era válida qualquer conversa com a criança. Ainda que não entendesse as palavras, sentiria o amor com que eram ditas e um dia aquilo seria por ela re-significado - havia aprendido com a psicanalista francesa Françoise Doltoo.

"Não posso conformar a minha vida a modelos, nem jamais poderei constituir um modelo para quem quer que seja; mas é totalmente certo que dirigirei minha vida segundo o que sou, aconteça o que acontecer."

Branca gostava de ler e arranjava tempo pra isso. Quando podia, percorria alguns sebos nos arredores da Praça Tiradentes. Os livros e revistas usados convocavam leitores especiais como ela, pessoas que desejavam passear pelas impressões de antigos donos, escritas nas margens.
Folheou a revista brasileira que comprara: "Terra Especial", de Junho de 1999. A capa mostrava uma praia entre uma rocha pontiaguda e uma cascata que caía na areia. Imagem de sonho. A manchete "Paraísos Ecológicos Brasileiros" e a chamada ""mais de 20 roteiros para você viajar pelo Brasil" a haviam atraído. Naquele dia abdicara da refeição e contentava-se com o sanduíche do Bar das Freiras, na PUC.
Pensou no homem que a vendera para a livraria. Um ser esquisito. Franzino e muito moreno, puxava de uma perna. Já o vira antes, por lá. Sempre de terno, cheirando a mofo – talvez do lugar onde guardava os livros velhos e mapas que vendia.

“A vida humana - ah!
A vida sobretudo - é poesia.
Inconscientes, nós a vivemos, dia a dia
passo a passo - mas em sua intangível
plenitude ela vive e se nos traduz em poesia.
Longe, muito longe da antiga frase
‘Faz de tua vida uma obra de arte’;
Não somos nós nossa obra de arte?”

Branca não era brasileira, embora vivesse no Brasil desde pequena. Admirava esse país misterioso, de gente cuja alegria era a segunda pele que recobria a fome e pobreza. Um povo de garra, valente - como ela.
"Talvez" - pensava - "seja essa natureza, o sol sempre presente, o tempo quente, o que lhes dá esse jeito alegre e comunicativo, ainda que sem motivos para contentamento”.
Mergulhava nas gravuras e textos e transportava-se, expressão transfigurada. 
- Olá!
Seu olhar deixou a revista. Cumprimentou o colega, convidou-o a sentar-se.
- Então, menina doce? Como foi o carnaval?
- Fui doce, Carlos, fui. Mas sei que a doçura mata.

“Acredite: a vida lhe dará poucos presentes. Se você quer uma vida, aprenda... a roubá-la! Ouse, ouse tudo! Seja na vida o que você é, aconteça o que acontecer.”

[continua]

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Os textos em itálico são de Lou Andreas-Salomé, citada por Luzilá Gonçalves Ferreira em Humana, demasiado humana. Rio de janeiro: Rocco, 2000.

 

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©2010 Sonia Regina