online. Grata pela visita e leitura da minha prosa. Sonia Regina. prosa, somente prosa

A GRIPE PORCINA

Sonia Regina


Aos amigos cujas almas caminharão juntas, sempre

Um lugar desconfortável, a sensatez

O ouvido latejava. Isso incomodava e aliviava. Incomodava o corpo, aliviava a mente - ultimamente pressionada pela Gripe Porcina. “Mas o vírus ataca os pulmões e não os ouvidos”, pensou.
Gostava de chamar assim, em castelhano, àquela gripe provocada pelo vírus influenza. Ademais, verificara no dicionário e havia a palavra em português. Um apelido no Brasil, um nome em outros tantos países. Uma realidade mundial. Era difícil se manter sensata entre alarmistas e negligentes, mas ela o fazia. E este era um lugar desconfortável para Maria José: a sensatez.

A justiça sob o signo de Libra

Sempre fora sensata e por vezes se cansava. Desejaria ser um pouco inconseqüente, poder se deixar levar - ao menos em algumas situações - pelos impulsos.
No trabalho era convocada pela chefia a opinar sobre algumas questões. Atendia por solidariedade, mas desagradada: odiava julgamentos.
- Maria, vem cá um minuto – interfonara o chefe.
- Olá, bom dia! Que céu, hein? Um azul de inverno!
- Senta aí.
Maria José sentou-se, quieta. A expressão do chefe era grave.
- Você sabe que não gosto de fazer diferenças. Para isso existem as regras, bastaria cumpri-las. Mas é exatamente porque existem as regras que existem os chefes: para intervir nas situações que saem da risca.
- Hãhã – anuiu Maria José, pensando que mais uma vez seu amigo libriano estava envolvido em dilemas causados pelo extremo senso de justiça.
- Embora você venha todo dia e cumpra seu meio-expediente, sabe que alguns dos teus colegas dão dois plantões integrais para poderem ter uma folga. Mas se responsabilizaram por cumprir o turno, em duplas.
- Sim...
- Acontece que Cristiana não vai ficar à tarde: marcou médico.
- ?
- Pois é... Ela marcou médico no horário do plantão. Acontece que Judith não poderia vir à tarde, também. Telefonou agora, pedindo dispensa: foi confirmada uma entrevista num jornal de Friburgo.
- E? – Maria José perguntou, mas sabia que ele tinha encontrado uma solução. Conhecia o amigo. Andava era atrás de confirmar o que já decidira.
- Dispensei Judith, vou cobri-la. E vou encarar o turno sozinho. Que acha?
Maria José poderia ter apostado que essa seria a decisão dele. Conheciam-se bem e eram librianos, ambos: extremamente justos e nada convencionais.
- Bem, você é chefe. Pode decidir ter no plantão somente um assistente social; pode assumir a rotina e se responsabilizar por ela. Mas as regras estabelecidas pela própria chefia são claras: dois profissionais por plantão; chefe não entra na rotina. Cristiana marcou uma consulta de rotina no horário do plantão. Judith quer investir em outra área...Mas tem talento artístico.
Edmilson esperava, calmamente. Sabia que Maria José estava envolta em considerações. Ainda pensava, sua amiga querida. Mas não lhe falhava nunca, a sensatez dela. Sua palavra final era sempre como uma sentença de juiz: argumentada, clara, embasada, justa.
Judith era boa, estava numa fase ótima: expusera seus trabalhos, havia sido comentada nos jornais do Rio. Agora fora chamada para uma entrevista. Cristiana estava para se aposentar. Embora fosse cumpridora dos seus deveres, era muito independente e não trabalhava bem em equipe. Solitária, dizia: “Assumo minhas faltas”. Coisas do serviço público: o patrão era o prefeito – muito distante; os chefes eram os próprios colegas – próximos em demasia.
- Acho que você tá certo. E é o único que pode ajudar Judith, com Éder de férias (o chefe de serviço). Eu não poderia ficar - você sabe que tenho consultório todas as tardes. Entretanto, Judith merece uma força. Estamos todos juntos há tantos anos, ela é esforçada, sempre solícita e essa é uma chance imperdível.
Assim foi feito e tudo deu certo. Dias depois sorriam, lendo a entrevista, felizes por terem participado para que ela acontecesse. Edmilson disse a Maria José, com ternura na voz:
- Eu me sinto orgulhoso, sou amigo de uma pintora. Vamos comemorar, Maria?
Maria José sabia que seria uma noite de muito chopp e papo. Eram confidentes. Edmilson era doce e atencioso, mas firme. Dizia coisas duras, dessas coisas que só um amigo pode dizer. Ela se sentia protegida por ele. E era, mesmo. Edmilson gostava dela como se fosse uma irmã mais nova.
- Você anda muito lábil, Maria, e está engordando. Por que não consulta um endocrinologista? Olha, meu irmão é bom. Por que não vai lá?
Maria José foi. Estava com alterações hormonais - a tireóide, a hipófise e a supra-renal enlouquecidas. Entrou de licença médica. Um tratamento longo viria por aí. 

Um segredo por trás da gripe

Impactada, a calma sensatez atropelada pelo e-mail que recebera da astróloga, chegou à consulta mensal. E comentou com o endocrinologista, irmão do amigo:
- Acabei de receber o trânsito astrológico e um jogo de tarot. Há lá uma fala que me impressionou muito. Diz que um homem que conheço bem vai morrer no primeiro semestre. (Estavam no final do ano).
- É ele: Edmilson! Mas ainda não sabe. Pensa que está com pneumonia por causa da gripe suína, mas tem câncer no pulmão. Um câncer invasivo: morrerá em três meses.
Falou assim, de supetão. E pediu segredo.
Maria José caiu em prantos.

O silêncio prolongado

Sofreu muito aquele luto antecipado, mas não traiu o segredo.
Embora Edmilson nunca tivesse calado com ela, Maria José permaneceu em silêncio. Sensata?
Um silêncio prolongado. Não o visitou, não lhe telefonava. Justa?

Falível

Estava ainda de licença um ano depois, quando Edmilson morreu. Não soube do enterro, mas avisaram-na da missa. Não foi.
Ainda em silêncio chora, de vez em quando. Sem afirmações ou interrogações. Sem clarezas.


[5.8.09]

 

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©2010 Sonia Regina