Dizeres
Caminhavam abraçados pela calçada da praia e Sofia destacava-se naquela paisagem cinzenta com a capa de chuva branca. Não se importava; nada a incomodava naquele dia de festa em que a carne exaltava. Há tanto tempo não saía para andar à-toa...
Rodrigo sabia que ela se aproximava do momento em que seu olhar para dentro deixaria de esmiuçar ossos e pedras. E embora o convite lhe tenha parecido estranho, aceitou sem pensar.
Garoava. Nenhum vendedor ambulante, somente um homem caminhava junto ao mar.
Sentaram-se num banco para apreciar a ressaca. Num dia ruim a humanidade na palavra é uma obra larga, grande. Comove e arde. Assim foi o diálogo que tiveram: a visão tinha voz inteira e, menos vaga, a língua falava.
- Vês solidão naquele homem, Rodrigo?
- Numa habitação íntima e cúmplice como a areia não há solidão.
- Ele escreve na areia, a onda vem e apaga. Será um exercício da alma?
- Minha querida, ali ganha vida um ritual vedado às palavras. Deus não lê o que se escreve na areia. É como uma sangria necessária promover essa escrita que não se vê. Escritos pela metade são uma maneira de exorcizar a língua que não fala.
- Uma voz ausente no lugar da alegria?
- Sim.
- Como uma seiva que não borbulha?
- Exato. As flores brotam da umidade a cada acorde da seiva. Sépalas unidas, cálice aberto ao mundo.
- Ele não estaria buscando florescer sem tempo marcado, num fluir secreto de sílabas, para além das estações?
- Como saber? Talvez.
O homem deixara a areia sem que eles percebessem, entretidos na conversa. Sentado em outro banco, escreveu num papel amarrotado que tirou do bolso. Aproximou-se, cumprimentou-os e deu-lhes o escrito, que dizia:
Obrigado. Se num tempo silencioso rolei, pranto confundido, e me debrucei, lágrima, sem a voz de uma procura, agora lavei os olhos, me deliciei, molhei a alma. Fluidifiquei a vida. Seguirei meu curso: brilharei, lago; contornarei obstáculos, regato; e fluirei, rio. Líquido ciclo me eternizará. Evaporei-me, com a sangria, de algumas densidades. Fiz vento nas idéias secretas que, como as folhas do ipê, já dançam o outono. O simples que inquieta não é fácil nem facilita, mas dá a justa emoção que permanece. E lavra.
Caminhavam abraçados pela calçada da praia e Sofia destacava-se naquela paisagem cinzenta com a capa de chuva branca. Não se importava; nada a incomodava naquele dia de festa em que a carne exaltava. Há tanto tempo não saía para andar à-toa...
Rodrigo sabia que ela se aproximava do momento em que seu olhar para dentro deixaria de esmiuçar ossos e pedras. E embora o convite lhe tenha parecido estranho, aceitou sem pensar.
Garoava. Nenhum vendedor ambulante, somente um homem caminhava junto ao mar.
Sentaram-se num banco para apreciar a ressaca. Num dia ruim a humanidade na palavra é uma obra larga, grande. Comove e arde. Assim foi o diálogo que tiveram: a visão tinha voz inteira e, menos vaga, a língua falava.
- Vês solidão naquele homem, Rodrigo?
- Numa habitação íntima e cúmplice como a areia não há solidão.
- Ele escreve na areia, a onda vem e apaga. Será um exercício da alma?
- Minha querida, ali ganha vida um ritual vedado às palavras. Deus não lê o que se escreve na areia. É como uma sangria necessária promover essa escrita que não se vê. Escritos pela metade são uma maneira de exorcizar a língua que não fala.
- Uma voz ausente no lugar da alegria?
- Sim.
- Como uma seiva que não borbulha?
- Exato. As flores brotam da umidade a cada acorde da seiva. Sépalas unidas, cálice aberto ao mundo.
- Ele não estaria buscando florescer sem tempo marcado, num fluir secreto de sílabas, para além das estações?
- Como saber? Talvez.
O homem deixara a areia sem que eles percebessem, entretidos na conversa. Sentado em outro banco, escreveu num papel amarrotado que tirou do bolso. Aproximou-se, cumprimentou-os e deu-lhes o escrito, que dizia:
Obrigado. Se num tempo silencioso rolei, pranto confundido, e me debrucei, lágrima, sem a voz de uma procura, agora lavei os olhos, me deliciei, molhei a alma. Fluidifiquei a vida. Seguirei meu curso: brilharei, lago; contornarei obstáculos, regato; e fluirei, rio. Líquido ciclo me eternizará. Evaporei-me, com a sangria, de algumas densidades. Fiz vento nas idéias secretas que, como as folhas do ipê, já dançam o outono. O simples que inquieta não é fácil nem facilita, mas dá a justa emoção que permanece. E lavra.
* * *
Sonia Regina
21.4.09