O rumor da paisagem
Sonia Regina
vestígios
Adair Carvalhais Júnior
ao acordar percebo na
luz frágil do quarto os sonhos
esquecidos meus
caminhos tropeçam o dia
inteiro nos longes que me
impus meu
dormir jamais espanta
o frio das ruas do meu
corpo
imenso coalhado dos resíduos das
marcas das nódoas
e da chuva perene
Percebe no escrito os movimentos do sonho e da realidade. Por vezes se depara com um ou outro conto antigo, em estado bruto - latentes as mudanças que virão a ser feitas, como se, autora, plagiasse a si mesma.
Ouve música e escreve no laptop, sobre o colo. A manhã chega, em paz, e a vontade é de que tudo dê certo. O que passa a limpo e a incomoda, joga pros personagens.
O mundo gira (lá fora), mas as cortinas cerradas mantêm o quarto - na penumbra - estático num sem tempo, valorizando o calor da memória que testemunha e ilumina o momento de soprar fronteiras.
Na escrita expõe marcas de sua vida e características de sua personalidade que preferia permanecessem anônimas. Continua, contudo.
Inventa um contentamento por ser sábado. A cultura e tanta novidade pra se consumir lá fora, as pessoas que colorem a vida quando estão junto...
Mas está só. Em meio a tantos, mas tantos caminhos e atalhos, que um simples domingo pleno de encontros felizes parece uma meta longínqua. Sente-se tropeçando na falta de praticidade, as palavras a envolvem numa confusão de idéias e planos que respingam das paredes.
Na sombra, entre o espanto e a luz, o seu olhar para si, à cata de um tempo demarcado, menos solto. Mais preciso, com imagens menos embaralhadas e mais próximas.
Nebulosas incertezas, afirmações e sua pertinência, hipóteses, conceitos, regras... A teoria, a crítica e sua observação nelas fundamentada em busca de argumentações que as clarificassem não mais a apóiam no mapeamento de seus caminhos, que se tornaram distantes até para fantasiá-los. Mas, a par da sensação de obscuridade, sua crença e fé de que vislumbrará, na sombra, parte da luz que a criou.
Na verdade, acordava de um sono gelado no qual por horas, minutos, dias, anos, ribombaram, em seu corpo - encharcado com os resíduos de um passado que lhe assombrava o futuro possível, desejado, adivinhado -, ecos de culpa, medo, inseguranças. Sim, havia vida a ser vivida, emoções a serem despertadas, nós a serem desatados, nódoas a serem clareadas, pontos a serem estimulados à exaustão – no hoje.
Os que não dormiam, naquele tempo nublado, estavam recolhidos. Foi dar uma volta pela rua deserta. Tomou um café na padaria, trocou duas palavras com o jornaleiro, inspirou fundo e retornou.
Abriu as cortinas e as janelas e retomou a escrita que, embora viesse a ser pública, tratava de assuntos pessoais e privados. Relata não só a impressão que teve dos lugares e os acontecimentos de suas viagens, mas episódios particulares. Todavia, a tendência a contar sua história a faz recortá-la e narrar com a intensidade encontrada no romance, deixando assim de configurar qualquer coisa próxima a uma autobiografia. Protegia-se.
Ouve rádio e vai anotando trechos de músicas:
Tão longe de chegar
mais perto de algum lugar
O silêncio, uma catedral
*
Mas renova-se a esperança
Pra que a vida nos dê flor
e fruto
Há que se cuidar da vida
Há que se cuidar do mundo
Alegria e muito sonho
Declarados no caminho
Sentimento, folhas, coração,
juventude e mel
*
It’s rainning again ...
*
Nem percebera que a chuva interminável se fora. Que houvera um interstício. E aquele “chove novamente”, metafórico e musical, tomou-o como um bom presságio, um rumor da paisagem. Seguiu ouvindo. Cantando mentalmente... Escrevendo:
Há uma musa da boa escrita, a solidão não lhe toca o corpo: se o verso não cala o rumor dos gestos, há sempre poema.
Pois cuidarei para que não toque o meu. Não o quero um trilho abandonado numa paisagem sem rumores, esquecido como não quero que fiquem alguns sonhos que não serão derrotados.