online. Grata pela visita e leitura da minha prosa. Sonia Regina. prosa, somente prosa

Antes do terceiro sorriso - Sonia Regina




Aparentemente tudo fluía e funcionava. A cadela a seus pés realizava o que havia de fidelidade e entrega incondicionais. O céu azul e os sons do domingo sobrepunham-se levemente. Das vielas os risos e saudações diziam do prazer do encontro e uma ou outra tosse não o turvava.

Núbia, contudo, sentia-se embaçada. Como um espelho no vapor d´água pouco mostrava de seu brilho e o cotidiano a incomodava em sua secura.

Ocupava o horizonte.  Soltara-se das raízes já havia alguns anos e voar era impossível. Metáfora antiga e empoeirada, as asas mantinham-se fechadas e rentes ao corpo. Núbia não tentava alçar voos e o consentimento das asas a comovia.

Sorriu, ao constatar o quanto precisava de novas raízes, alguma rotina e lençóis de algodão. Aqueles de seda, belos e caríssimos, potencializavam sua sede. Tinha uma paixão acesa e seca.

Núbia não se refugiava no que vivera. O passado não adentrava o presente senão para desdobrar-se em efeitos que iluminavam sua vontade.
Aprumou-se quando a vizinha a chamou do portão. Atendeu-a, deu-lhe a xícara de açúcar e um sorriso. 

***
 
À porta entreaberta rangia o dia. Aquele coração que acordara solitário e sem sonhos rendeu-se à marcha natural das coisas. Nela, a existência da grande força que tudo comanda...



Sonia Regina
30.6.12

Um momento de cada vez

A colheita das maçãs, feita manualmente de fevereiro a abril, não acontece aos domingos. A mulher caminha pela plantação vazia de pessoas, lentamente. Deseja somente cumprir aquela pouca disposição de uma sensibilidade que exacerbou durante os últimos anos. Não quer estar consigo mesma nem com ninguém e a tarde nublada e quente está propícia a quietudes.
Sem espanto aproxima-se de uma macieira carregada. Os olhos brilham, refletindo o vermelho que exubera, mas os dedos não correspondem e evitam o tato. A expressão de enfado toma-a por inteiro, não tem interesse pela cor ou aroma dos frutos: deseja tão-somente um tronco para recostar-se e ler.
De vez em quando lê os clássicos. Ama-os em suas entranhas. Aprendeu a guardar alguns personagens na hora da dor pura, junto com outras imagens fortes que não respeita tanto.
Jean Valjean é um deles, assim como Cosette[1]. Pensa nela, no balde d’água, na pousada, nos donos que a maltratam, nas filhas deles e suas intrigas. Lembra-se vagamente da convivência adolescente com o próprio pai, a madrasta e sua filha. Ele nunca lhe deu uma boneca, ou abraçou-a, e muito, muito internamente e num tempo antigo, a mulher inveja Cosette por ter tido Jean Valjean como seu pai adotivo.
Continua a leitura, os personagens e as recordações a sussurrarem-lhe coisas. O tom é agudo e misterioso, por imposição dela: convém ao dom profético da literatura.
Poucas horas depois se levanta cabisbaixa, o olhar interrogativo afivelado aos ombros curvados.  Move-se em círculos como um cata-vento que gira sem mirar o norte – não vislumbra o futuro e isso a preocupa.
Os ventos alísios vindos do sudeste chegam com a noite e dominam a paisagem. Aprendeu que são quentes e úmidos, aumentam a temperatura e indicam chuva forte.  ‘Será?’, pensa olhando para o céu vago, coberto de nuvens. ‘Um momento de cada vez’, responde para si mesma. E se entrega ao vento, cujas rajadas são como frases curtas. Lembra-se da expressão que aprendeu na infância: ‘ISSHOUKENMEI GANBATTE NE’. [2]
A mulher caminha pela plantação vazia de pessoas, suavemente, sob o temporal.
Chega a casa, molhada e solta.
Dizem que os ventos desbloqueiam naturalmente o mais íntimo do estio. O obscuro, liberto e lavado, não mais paira sobre o verão. Nem sobre ela.

Sonia Regina
22032012

Imagem: Cosette, de Émile Bayard (1837-1891)

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[1] Cosette e Jean Valjean são personagens do livro Os Miseráveis, de Victor Hugo.
[2] "vá em frente, não se desanime, vai dar tudo certo", em japonês. O povo japonês costuma dizer ISSHOUKENMEI frequentemente para dar força, dar mais energia positiva e incentivar seus filhos, seus amigos e seus parentes quando estes estão passando por uma fase ou uma situação difícil.
FONTE: Curso de Língua Japonesa - Método Rosa Sonoo - http://www.sonoo.com.br

O mistério em seis atos

Ouço os estrondos do vulcão. Após cada erupção sangro pelos poros da terra, rompo as matas e cubro estradas de cinzas e névoa.
Trabalho na disrupção dos congelados padrões de percepção e faço os sentidos saltarem, voando para além do que foi discurso. Uma revolucionária reorganização do cotidiano.
Quente, evaporo. Condenso, chovo. Lavro inférteis terras em busca da essência quase ausente.
No casulo preparo as asas amarelas da borboleta. Tenho guardados vários e caprichados voos. Alimento-me da folha perene da árvore da vida e me preparo para colher o mesmo ar puro dos corpos ligeiros.
Minha disposição é forte, explícita profissão de poética. Talvez eu seja o exemplar único de um instante efêmero decorrente da inspiração. Removo ordenações, propicio a fala do sensível e a dança do despertar.
Sem ruminar metas, aspiro subtrair-me à causalidade. O chão corre devagar e não hesito entregar-me ao suave deslizar.
Sou o mistério.






 

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©2010 Sonia Regina