online. Grata pela visita e leitura da minha prosa. Sonia Regina. prosa, somente prosa: Acabou Chorare

Acabou Chorare

Sonia Regina
[15/9/10]

O ar é de um azul tangível, como as hortênsias. Mas não para ela, que vivia uma realidade sem direito a lirismos. Um novo impedimento chegara abruptamente e enfrentá-lo com garra - como de costume, quando se tratava dos obstáculos - não havia evitado a desastrosa devastação.

No consultório do médico, aguardava a vez. Da televisão ligada para ninguém, ouvia uma ou outra frase. Nenhum sentido. “As partes nem sempre levam ao todo”, pensou Núbia, lendo um artigo sobre a Gestalt Terapia . [1]

Autorizava-se ao descanso, ali. Ultimamente percebia o corpo se agilizar mais conforme a necessidade do que com o estado de espírito. Andava aos trancos e tinha a sensação de estar arriada como um carro sem molas.

“Cuida bem de você”, disse a uma conhecida ao se despedir, após um encontro casual e rápido. Conselho que devia dar a si própria. Nada faltava à pensão, aos amigos, à casa. Para si não havia tempo, oportunidade, motivo – senão para o adiamento.

Passar das costuras à cozinha não fora simples: Núbia não gostava de cozinhar, a alquimia não a fascinava. Mas agia com perfeição, tinha fregueses fiéis e o negócio ia bem. O ânimo é que não a contemplava. Fazia tudo com certo esforço, o corpo magro pesava cada vez mais.

Havia perdido o gosto pelas bijouterias, vestir-se era por demais cansativo – faltava-lhe energia. Nada questionava, cuidava do imprescindível e pouco sorria. Não havia mais luz ou alegria em seu olhar.

Alma e corpo pareciam descolar-se. “Pelos olhos, a tristeza da tua alma escapole”, dissera-lhe Dadinho. Não entendeu, tampouco deu muita atenção. A quase nada dava atenção, dedicava-se ao imprescindível.

Dias depois chegou uma encomenda pelo correio. Quase a recusou, porque nada comprara, mas terminou por aceitar: seu nome e endereço tão corretos. Era um CD de um antigo grupo, que muito cantara na juventude: Acabou Chorare, dos Novos Baianos. Junto, um cartão dizia:

“Na antiguidade os sábios discutiam sobre o peso da alma. Em Cabo Verde existe uma medida precisa: la sodade (saudade). A saudade é a matéria prima de la morna, um canto nascido da emigração, uma arte do adeus, que se fez melancolia universal.

é pequeno o passo da tua letra,
baixo e lento o vôo do teu desejo
: tua alma pesa por não saber chorar.

Meu amor, não há de ser nada: faz zum-zum... .” [2]

Chorou convulsivamente lembrando-se da letra daquela música, no coração a certeza de que ficaria tudo lindo.



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[1] O conceito da Gestalt, Supersoma, refere-se à idéia de que não se pode ter conhecimento de um todo por meio de suas partes, pois o todo é maior que a soma das partes.




[2] Menção à música do CD.

Acabou Chorare
Os Novos Baianos
Composição: Galvão - Moraes Moreira

Acabou chorare, ficou tudo lindo
(...)
Talvez pelo buraquinho, invadiu-me a casa, me acordou na cama
Tomou o meu coração e sentou na minha mão
Abelha, abelhinha...
Acabou chorare, faz zunzum pra eu ver, faz zunzum pra mim
(...)
Abelha, carneirinho...
Acabou chorare no meio do mundo
Respirei eu fundo, foi-se tudo pra escanteio
Vi o sapo na lagoa
(...)
Fiz zunzum e pronto
(...)


 

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©2010 Sonia Regina