online. Grata pela visita e leitura da minha prosa. Sonia Regina. prosa, somente prosa

O JOGO DE TRANSFIGURAÇÃO

Sonia Regina


O professor-doutor Anastácio Torres foi convidado, pela Faculdade de Letras da Universidade qual sou vice-reitora, a participar de uma Mesa-Redonda sobre o Princípio Compositivo do Jogo de Transfiguração de Identidades. Ele havia estudado nesta universidade, estava alegre por retornar.
Os alunos adoraram e o parabenizaram pela performance, pela encenação que promoveu ao dar exemplos; os demais professores o elogiaram muito pela dinâmica inovadora. Todos saíram abismados quanto à sua percepção da realidade e à sua interlocução elaborada: “Assombroso! Um sentido do real extraordinário, uma imaginação invulgar”. Anastácio nada entendeu. Pelo contrário, estava incomodado por ter usado mal seus dez minutos, abstraindo-se em divagações e proferindo somente o que havia na primeira ficha do que preparara com tanto gosto e cuidado.
Não havia percebido, o professor, que os matizes de seus pensamentos verbalizados e seus relatos pessoais estavam inter-relacionados aos tópicos que havia elencado.
Abaixo transcrevo a gravação do fantástico pronunciamento. Em itálico coloco o que constava de suas fichas (às quais tive acesso). O restante texto é, na verdade, o diálogo interno que manteve, paralelamente, consigo e com suas lembranças: o tal que o professor “encenou tão brilhantemente” durante o evento.


O Princípio Compositivo do Jogo de Transfiguração de Identidades


Começo esta aula sobre o princípio compositivo do jogo de transfiguração de identidades examinando alguns procedimentos de (des)figurações. Um escritor tem a escrita facilitada por ser um sujeito descentrado, que se fragmenta em tantas almas alheias à sua: os seus personagens.

Talvez não tão alheias assim, uma vez que muitas vezes enceno a mim mesmo. É... ao escrever a personagem eu me escrevo. Escrevo sobre a disciplina, a súplica silenciosa, a avidez da leitura por uma escrita vigorosa e emocionada, numa viagem não restritiva do barco que avança vagarosamente – contrito e em comoção extrema - na escuridão e na claridade, no tempo e no espaço.

Todo autor, através dos seus personagens, escreve a si próprio... e escreve... a outros...  [pausa]

Quantos anos se passarão até que fale contigo pela última vez e pela primeira vez você nada me diga? Quantos, até que os meus olhos – ou os teus - pinguem duplamente? Do nosso olhar assustado a morte nos fitará, crua e nua nos enfrentará.
Sustentaremos o embate silencioso sem coragem ou docilidade – somos guerreiros. Qual de nós se debulhará em palavras e cobrirá o coração cansado, que se despede do movimento?
Ao que ficar restará um livro por escrever, sobre o tempo encerrado nas datas.  [pausa]

Um escritor não está fechado em sua individualidade e unidade, e vai tecendo relações. Há um ‘eu’ que se relaciona e assim vai se construindo, num diálogo que percorre toda a obra. Esse ‘eu’ dialoga com outros personagens, consigo mesmo como autor, com o ato de escrever. É um diálogo constante!

Mas pode tornar-se um vozerio e abafar a minha própria voz. Nesses momentos dou voz aos personagens para que a minha não fique esgarçada, como uma corda vocal que se deixa exceder nas entonações.
Teclo na madeira da mesa e ouço, do piano que não mais tenho, a música. É o que me faz olhar em frente e saltar, buscar o invisível que venha inquietar e colorir de azul a inércia e a indiferença, num céu que caia sobre mim como um deus revigorado: nas raízes de uma árvore seca, nas linhas firmes dos lábios a boca aberta e, na abertura da fome, a voz.

Os timbres importam muito. Ninguém inventa bem o que não contata e uma simples palavra pode atrapalhar e bloquear.

O meu olhar não alcança a arte que penetra a manhã, desperta os sonhos e se apodera das mãos. Como chamar o sal da terra para o corpo do escrito sem um protocolo de néctares?

Lembro-me de um ensaio que escrevi sobre a Clarice Lispector, onde eu dizia: o timbre pessoal da narrativa de Clarice Lispector não diz necessariamente do ‘eu- autor’. E não diz.

Olham minha escrita e não vêem além do que eu vejo. Não mais choro, ou rio. Sorrio, simplesmente, um riso imotivado que tremula em meus dedos e já não se entrega ao espanto da língua.
Sinto a pulsação do verbo nos dedos. Mas não aprendi, dos pássaros, o trinado. 

Há que ter timbres em uma escrita. Como um trinado, a escritura deve estar bem provida de matizes. Esse é um dos procedimentos de (des)figurações do sujeito encenado.

Os timbres importam tanto que sem eles faço uma leitura monocórdia, monótona, como o som produzido por um instrumento musical com uma só corda. Minha imaginação voa, sou um sujeito e como qualquer sujeito eu me fragmento: sou eu mesmo e também os outros.

 

Os timbres diferenciam os diversos ‘eus’: o ‘eu-autor’, o ‘eu-narrador’, o ‘eu’ redistribuído pelos personagens: personagens-pessoas e personagens-coisas.

É setembro, chega a primavera e as sementes caem na terra. Realizarão a nutrição num ciclo natural, na medida justa do cultivo.

O tema da identidade e do sujeito descentrado percorre toda a obra.

Bem... precisaria de mais tempo para apresentar a vocês meus pensamentos sobre o tema. Muito agradecido, coloco-me à disposição para outros encontros.


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[28.6.09]

 

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©2010 Sonia Regina