online. Grata pela visita e leitura da minha prosa. Sonia Regina. prosa, somente prosa


Uma artista líquida

Sonia Regina




Pelo sonho é que vamos,

comovidos e mudos.
(...)
Chegamos? Não chegamos?
- Partimos. Vamos. Somos.

Sebastião da Gama



Emocionada, Liana termina o desenho do que será mais um quebra-cabeça. Num fundo verde, o bege manchado sugere um mapa: terra e mar. Em terra, o contorno de uma pessoa que observa o mar. Ao longe, um barco à vela.

* * *

Era sempre assim. Liana fazia um desenho abstrato colorido e, sobre ele, algumas linhas cinza.
O silêncio trazia as imagens. Olhava-as demoradamente, transportava-se para o local que ia surgindo na mente, acertava uma ou outra linha, e pronto! As histórias ganhavam vida.
Depois, com linhas pretas grossas, sempre sinuosas, dividia o desenho e o enviava para corte e acabamento.
Essa era uma inovação que vinha tendo sucesso. Muito requisitada desde a exposição de suas peças, Liana aceitava todos os convites. Mas não conhecia as regras do saber viver, numa sociedade pós-moderna, e o conveniente não lhe era parâmetro. Por vezes cogitava se nascera em época errada.
A paixão pelas imagens e pela literatura e o pouco talento para o desenho e para a escrita pareciam não ter conciliação possível. Mas não a detinham, as incongruências – reais ou aparentes. Ao contrário, os desafios acirravam sua criatividade, não impedindo sua expressão. Liana confiava e sonhava. Acordada!
Girava o mundo e passava o tempo, a alma de Liana ultrapassava o espaço, sempre mergulhada nos versos dos autores. Gostava de ler e a poesia a fazia imaginar.
Não escrevia, mas desenhava. E, ainda que daquela maneira abstrata, contava histórias de esperas não vazias. Desejo, esperança, possibilidades. Essa era a vida de verdade: a caminhada.
Não se tratava de afirmar o presente contra ou sobre o passado, mas de deixar o coração viajar pela memória através do tempo e do espaço, trocando.
Dando, recebendo, com alegria Liana seguia desenhando a poesia que escutava no silêncio, exercendo diariamente uma escrita compartilhada – de vida.
Aonde Liana chegou? Não sabemos. Sabemos que partiu, foi. É.
É uma artista que se expressa com absoluta clareza, seus desenhos são poemas construídos de maneira elegante e enxuta. Liana não faz concessões ao fácil e cultiva uma riqueza imagética.
Inteiramente plásticos, os contornos lembram os da água, frente a um obstáculo; sempre há um líquido representado nas composições dessa artista líquida.
Há nela um ouvir mnemônico que integra o ontem e o hoje ao amanhã. Entre espelhos e reflexos estão a fala e o silêncio que nominam sem buscar se apropriar do inominável. Eco do tudo, e do nada.
É uma pessoa una com a Unidade das coisas: mulher, pintora, ser - humano.
E a arte "seguirá sendo o que é - essa forma inefável de dar felicidade, cantando a vida enquanto houver o homem", como diz Thiago de Mello.
[01.07.09]


 

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©2010 Sonia Regina