online. Grata pela visita e leitura da minha prosa. Sonia Regina. prosa, somente prosa

Como em uma gangorra



I

Estava condenada a uma existência cotidiana naquela grande metrópole. Sina ou sentença divina, jamais saberia.
A multidão é um asilo e uma droga: nela o excluído se protege, dela o abandonado se embebeda. Ambos transitam incógnitos, como Aglaia. Viera do interior, sempre morara sozinha. Quando chegou ao Rio percebeu que precisava ditar outro ritmo para suas passadas ou o dinamismo excessivo da capital a atropelaria.
Nas avenidas ônibus bufavam e carros resfolegavam o monóxido de carbono. Automóveis e pedestres pouco se diferenciavam, mesmo depois da construção das passarelas: a fumaça os envolvia completamente, quase viscosa.
Na rua das mansões não era tanta, a poluição. Gostava de caminhar por aquela avenida larga e clara, embora não acompanhasse, até o oceano, o rio que a dividia. Incomodava-a a proximidade do mar, quando não podia banhar-se. E Aglaia estava sempre atarefada, nunca tinha tempo.
Não era por lá que procurava o brilho desejado por sua mãe, quando lhe dera o nome grego de uma das três Graças, que significa ‘esplendor’, ‘brilhante’. Sim, Aglaia brilhava. Acreditava no investimento pessoal. Estudava muito, estava sempre fazendo um curso de pós-graduação e se cuidava. Fazia hidroginástica e trabalhava bastante, não deixando passar uma oportunidade. Havia os que a achavam oportunista, mas não ligava.


II

Aglaia seguia atenta e, com sua simpatia natural, ia conquistado colegas e patrões, fazendo amigos. Era idealista e decidida, sistemática. Autodidata, enfaticamente protestava contra a divisão de trabalho que requer especialistas. Não acreditava no resultado de tarefas individuais desvinculadas e solitárias e era sincera quando proclamava a importância do trabalho em equipe, da necessidade do grupo e até das divergências, que considerava saudáveis fomentadoras de mudança, causas de crescimento pessoal e profissional.
Engenheira, gerenciava o Departamento de Assistência Técnica de uma pequena empresa cuja matriz ficava em Belo Horizonte. Dona de uma personalidade forte, Aglaia era cética e crítica. Mas firme e doce, era muito querida. Implacável quanto a deslizes, negligências e engodos; como nenhum outro gerente ouvia os funcionários: “ouço para dar voz”, dizia. De fato, eram os da sua equipe os que mais participavam, em todos os sentidos: do compromisso e do lazer às reivindicações trabalhistas. Aglaia, na retaguarda, num pequeno ritual celebratório velava pelos direitos deles. Isso os mantinha longe dos excessos e angariava a boa vontade da diretoria. Ela traçara uma ponte que unia os extremos da pirâmide e os contrários.
Namorara muito; amara uma única vez, aos quinze anos. Rejeitada, jurara nunca mais sofrer por amor.
Aos trinta e dois anos, Aglaia dividia o mundo em negras fatias simétricas. Adorava trabalhar; com os homens se comprometia pouco. Observadora, detectava detalhes e gostava das nuances invisíveis a olho nu.


III

A música era uma paixão antiga, que exercia sem tocar um instrumento: cantava em coros, desde criança. Sentia-se renovada quando saía de algum ensaio ou de alguma apresentação e não compreendia a palidez e o cansaço de algumas colegas.
Em algum livro havia lido que cada canto era um poema que ia e voltava de uma dimensão sem registro material, por onde também transitavam as auras dos instrumentos que ganhavam alma pelo toque dos dedos e lábios dos músicos. Aglaia gostara daquela idéia, que transpunha para o coro: isso explicava o seu aumento de energia.
E como explicava! Um coro funciona como um quadro vivo de criaturas que transforma sua voz individual em um instrumento, em prol de uma tarefa conjunta. As colegas que levavam isso a extremos e abdicavam da voz por uma celebração musical quase ritualística, estabeleciam uma conexão com o lado obscuro de Aglaia. Aquela passividade propiciava que ele ganhasse vida e as tornava suas vítimas.
Ela de nada tinha consciência, tampouco sabia que sua mãe fora alertada para isso por um guru, antes dela nascer. Estava predestinado e fora era essa a origem do seu nome: uma tentativa de mantê-la em contato com o esplendor da luz.
Aglaia não sabia que a sujeição de algumas colegas a ajudava a nutrir-se. Não tinha a mais pálida idéia de que sua voz sugava, daquelas pessoas, a energia de vida que faziam transcender no canto.
Os complexos negativos de Aglaia, refugiados no inconsciente, invadiam o campo da consciência através de sua voz em unidade com aquelas que se entregavam espontaneamente. Eles roubavam a energia psíquica daqueles egos para se fortalecerem no inconsciente.
Ou, dito mais simplesmente: os aspectos do inconsciente de Aglaia saíam da escuridão e vinham para a luz da consciência. Drenavam a força vital das vítimas, que ficavam fatigadas, apáticas e perdiam a cor do rosto. Enquanto Aglaia se motivava e fortalecia, certas colegas eram a expressão da desmotivação e da fraqueza.


IV

Nas apresentações e ensaios as vozes não cessaram de pulsar juntas, reproduzindo acordes pouco banais; corpos continuaram sendo sugados em sua energia vital. Até que, para surpresa de todos, Aglaia desmaiou depois da última apresentação. “Stress, cansaço extremo, depressão grave”, diagnosticou o médico. Ninguém entendeu. Preocupada com os cansaços freqüentes das participantes, a regente suspendeu as atividades do coral.
Contudo, Aglaia não era a única a vampirizar: afinal, para que a relação vampiro-vítima se concretize e mantenha, ambos devem ter energias atuantes, como em uma gangorra. Os opostos se nutrem alternadamente. Toda vítima tem um lado obscuro forte e carrega um vampiro em potencial enquanto contrário; todo vampiro traz em si um pouco de vítima também.



Sonia Regina

[maio de 2009]



 

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©2010 Sonia Regina